sábado, agosto 25, 2007
Hannah Arendt e o julgamento de Eichmann
Outro livro muito interessante que li recentemente foi Eichmann and the Holocaust, constituído por excertos de Eichmann in Jerusalem. Há muito tempo que tinha vontade de ler o famoso livro de Hannah Arendt, e quando vi este livrinho na Fnac enquanto comprava leitura para as férias não hesitei, só depois me apercebi de que não era a obra completa. De qualquer forma, o texto é extraordinariamente bom, certamente representativo, e já encomendei o livro integral na Amazon.
Nunca tinha lido nada de Hannah Arendt; escreve muito bem, com uma clareza, lucidez e elegância extraordinárias. Não admira que o livro tenha sido tão mal recebido pelo Estado de Israel e pelas comunidades judaicas em geral - não só é muito crítica sobre a forma como o julgamento de Eichmann foi conduzido como aborda muito clara e explicitamente o papel da sociedade em geral e dos líderes das comunidades judaicas em particular durante a perseguição. E, ao negar o estatuto de monstro a Eichmann (a famosa banalidade do mal, expressão cunhada por ela precisamente neste texto), levantou questões extremamente perturbadoras e desconfortáveis para todos nós (pois seria obviamente muito mais reconfortante pensar que tudo aquilo acontecera por uma aberração de alguns monstros invulgares, em vez de ser o resultado de uma conjuntura particular de acontecimentos, ideologias e muitas pessoas normais que agindo de forma prosaica e legalista realizaram um crime de proporções inéditas na história da Humanidade).
Pois como Hannah Arendt diz: "O problema com Eichmann era precisamente haver tantos como ele, e não serem nem pervertidos nem sádicos, mas terrivel e aterrorizadoramente normais. Do ponto de vista das nossas instituições legais e dos nossos valores morais, esta normalidade era muito mais assutadora do que todas as atrocidades juntas, pois implicava - como fora dito repetidamente em Nuremberga pelos réus e os seus defensores - que este novo tipo de criminoso, que é de facto hostis generis humani, comete os seus crimes em circunstâncias que lhe tornam virtualmente impossível saber ou aperceber-se de estar a agir mal." E desta forma Eichmann é retratado como um mesquinho funcionário, meticulosamente eficiente e tacanhamente ambicioso (o que mais lamenta é não ter sido promovido ao posto imediatamente superior, apesar de ser tão eficiente), com um discurso (reflexo do seu pensamento) repleto de pretensiosas e vazias frases-feitas, um perfeito exemplar de uma baixa clase-média de funcionários de colarinho mesquinhos e possidónios. "Aquilo em que ele acreditou fervorosamente até ao fim era no sucesso, o valor principal da 'boa sociedade' como ele a conhecia. [...] A sua consciência fora efectivamente aplacada quando notara o zelo e prontidão com que por todo o lado a boa sociedade reagia como ele. Não necessitara de 'tapar os ouvidos à voz da consciência', como o julgamento afirma, não porque não a tivesse mas porque a sua consciência falava com uma 'voz respeitável', com a voz da sociedade respeitável á sua volta."
Mais impressionante ainda que este retrato de Eichmann (impressionante precisamente por ser tão prosaico, como já foi dito) é a excelente descrição da atitude dos outros intervenientes. Os perpetradores das atrocidades, também quase todos eles 'pessoas respeitáveis' (como se vê pelas suas declarações em Entrevistas de Nuremberga), para quem "...o problema não era tanto ultrapassar a sua consciência como vencer a piedade animal que afecta todos os homens normais em presença do sofrimento físico. O truque usado por Himmler - que aparentemente era fortemente afectado por estas reacções instintivas - era muito simples e provavelmente muito eficaz; consistia em voltar estes instintos ao contrário, ou seja, em direcção a si próprio. De modo que em vez de dizer: Que coisas horríveis fiz às pessoas!, os assassinos poderiam dizer: Que coisas horríveis tive de suportar no cumprimento do meu dever, quão pesada foi a carga sobre os meus ombros!" Ou os numerosos colaboradores activos, que depois afirmaram terem sido sempre secretamente adversários do regime mas submeterem-se às suas ordens e cometerem crimes para "parecerem nazis" ou para impedirem que os "verdadeiros nazis" cometessem crimes ainda piores, chegando a criar o admirável conceito de "emigração interior" para justificar a sua não-emigração de facto, como se tivessem fugido para algum ignoto recesso das suas mentes, em que um bom exemplo foi "...apresentado [...] num tribunal polaco pelo antigo Gauleiter Arthur Greiser de Warthegau: apenas a sua 'alma oficial' tinha cometido os crimes pelos quais foi enforcado em 1946, a sua'alma privada' fora sempre contra eles."
Um dos pontos levantados por Hannah Arendt e que acho extremamente importante é o facto de todos na época, incluindo as vítimas, terem aceite a existência de distinções entre os judeus, o conceito de "judeus importantes", o tratamento de excepção a grupos como os condecorados da 1ª Guerra: "Para aqueles que não desejavam fechar os olhos deve ter sido claro desde o início que 'era prática geral permitir algumas excepções de modo a poder manter a regra geral com maior facilidade. [...] O que era moralmente tão desastroso na aceitação destas categorias privilegiadas era que toda a pessoa que queria uma 'excepção' para o seu caso implicitamente reconhecia a regra. [...] Mesmo após o final da guerra, Kastner orgulhava-se do seu sucesso em salvar 'Judeus proeminentes', uma categoria oficialmente introduzida pelos Nazis em 1942, como se também na sua opinião fosse evidente que um judeu famoso tinha mais direito a permanecer vivo do que um judeu vulgar." E termina o assunto desta forma: "Na Alemanha actual, esta noção de judeus 'proeminentes' ainda não foi esquecida. Enquanto os veteranos e outros grupos privilegiados já não são mencionados, o destino de judeus 'famosos' ainda é deplorado a expensas de todos os outros. Não são poucas as pessoas, especialmente entre a élite cultural, que ainda publicamente lamentam o facto de a Alemanha ter mandado Einstein embora, sem perceberem que foi um crime muito pior matar o pequeno Hans Cohn da loja da esquina, mesmo que não fosse um génio."
Penso que o problema mais desconfortável de todos relacionado com toda a história das atrocidades nazis é o medo que temos de nós próprios - se num dado momento foi possível cometer tais crimes de forma organizada e burocrática num Estado europeu moderno, com a colaboração activa ou a tolerância passiva de todo um povo (de vários, desde a ocupação dos países europeus), será que a nossa atitude teria sido diferente? Até que ponto o nosso comportamento se teria mantido íntegro? Teríamos fugido, colaborado, "emigrado interiormente", resistido?
São algumas das muitas questões abordadas, agora resta-me ler o livro completo. Certamente falarei disto novamente.
Bug, de William Friedkin
Bug é uma peça de teatro filmada que provoca uma certa ambivalência. Inicialmente, o filme é lento e mesmo entediante, mas por outro lado vai criando um clima de desconforto e expectativa que depois cresce numa espiral de loucura e violência na segunda parte. Não sei se o realizador teve a intenção de propor vários níveis de interpretação da história (ou seja, até que ponto pretende que aceitemos como credíveis os delírios das personagens, ou que tomemos a história como uma metáfora do mundo moderno), mas parece-me que sim, por certos pormenores (que achei muito dispensáveis) como os flashes dos insectos a circular ou a eclodir. De qualquer forma, é uma história intensa de loucura, com boas interpretações e um excelente retrato da esquizofrenia paranóide; ao longo do filme lembrei-me muitas vezes de Repulsion, de Polanski, que é um dos melhores retratos em filme da esquizofrenia, e de Safe, de Todd Haynes, pela escalada inexorável do absurdo irracional e angustiante. Ou seja, não é um filme que se goste de ver, pois causa desconforto, mas por isso mesmo é interessante e com várias cenas excelentes (sobretudo o ambiente final de irrealidade do quarto forrado de alumínio).
Paranóia, de D.J. Caruso
Disturbia, de D.J. Caruso, é um filme divertido e bem conseguido, um thriller para adolescentes que teve a boa ideia de abandonar os clichés satirizados em Scary Movie e ir buscar uma boa ideia a um clássico (Rear Window), aadaptá-la aos dias de hoje, temperar com humor e suspense qb, sem recorrer a grandes twists nem personagens complexas. O resultado é um filme que se vê com agrado e em que se entra muito bem, e que mesmo sendo muito previsível ainda faz dar um ou dois saltos na cadeira.
quinta-feira, agosto 16, 2007
Algumas leituras de férias
Nunca tinha lido nada de Don DeLillo, e devo dizer que Falling Man não me agradou especialmente. É razoavelmente interessante, sobretudo nas descrições do dia do 11 de Setembro e do estado de espírito de confusão e estupefacção / choque que se lhe seguiu, mas a evolução das personagens é pouco credível, o desenvolvimento da história pouco interessante, as partes do terrorista enxertadas à pressão, e sobretudo a escrita e a estrutura do romance são pretensiosos e entediantes, fizeram-me lembrar uma Anne Tyler com pretensões a Ian McEwan. Decididamente, o 11 de Setembro e os seus efeitos mereciam um tratamento literário melhor.
Sempre gostei muito de História, e acho este tipo de exercícios de especulação sobre a história contrafactual extremamente interessantes quando bem fundamentados, como é o caso de História Virtual, organizado por Niall Ferguson. Abordei a longa introdução com algumas reticências devido à sua extensão (100 páginas!), mas é das partes mais interessantes do livro e ajuda muito na sua compreensão. A revisão sobre as várias teorias e formas de encarar e de escrever a História está excelente e faz reflectir. Quanto aos vários cenários apresentados, o menos interessante pareceu-me o primeiro, o da América britânica, e a conclusão, com a sua "História alternativa", está muito engraçada. Também sempre me fascinou até que ponto o evoluir da História é determinista ou dependente do acaso, e a minha opinião actual é que é um misto de ambos - a tendência geral é determinista, mas com grandes variações a curto / médio prazo dependentes do acaso, nomeadamente de factores relacionados com os indivíduos. No fundo penso que acaba por ser também a posição de Niall Ferguson, ao ler a conclusão - apesar de vários cenários diferentes ao longo do tempo, o curso geral da História não ficava muito diferente. Ou será porque conhecendo a História que foi se torna quase impossível imaginar algo de completamente diferente a longo prazo? Com efeito, se os desvios se sucedessem e potenciassem, a certa altura quase tudo seria possível de imaginar, o que começa a ser inútil para a análise e compreensão do que de facto aconteceu..
Gostei imenso de Norwegian Wood. Haruki Murakami está actualmente muito na moda; eu tinha lido dele há uns anos A Wild Sheep Chase (traduzido recentemente em português como Em Busca do Carneiro Selvagem...) e não tinha gostado muito - escrita interessante, mas não me prendeu especialmente e achei-o no geral um pouco maçador e pretensioso. Mas Norwegian Wood é muito bom, um livro intimista e terno, com personagens e situações extremamente bem construídas e reais, uma história agridoce de nostalgia e crescimento, e uma escrita sóbria e cativante. Depois deste, fico com vontade de ler mais Murakami.
Este é daqueles livros de que não sei como dizer que gostei, porque o gostar aqui não se refere a nenhum prazer estético (nem de qualquer outro tipo, a não ser talvez o de conhecer, de saber, de tentar compreender). O livro é excelente para quem se interesse pela questão do nazismo e das atrocidades nazis, e de como foi possível. E a leitura das entrevistas a vários acusados e testemunhas do Julgamento de Nuremberga é mais um elemento, e não para simplificar. Sinto sempre uma espécie de horror gelado misturado com um fascínio doentio sobre esta questão, porque de facto foi tão horrível que desafia o entendimento. As declarações dos nazis revelam duas tendências comuns a quase todos - o afectarem desconhecimento do que se passava com os judeus (temperado por aquela tão humana mania de acrescentarem: "eu até tinha amigos judeus" ou "sempre ajudei pessoalmente os judeus") e o empurrar as responsabilidades para os ausentes (geralmente Hitler, Himmler e Bormann). E depois é a forma espantosa como descrevem tudo o que aconteceu como normal, banal, burocrático, o que atinge o expoente do horror / absurdo nas declarações de Rudolf Hoess, Julius Streicher e Otto Ohlendorff. Arrepiante.
Sempre gostei muito de História, e acho este tipo de exercícios de especulação sobre a história contrafactual extremamente interessantes quando bem fundamentados, como é o caso de História Virtual, organizado por Niall Ferguson. Abordei a longa introdução com algumas reticências devido à sua extensão (100 páginas!), mas é das partes mais interessantes do livro e ajuda muito na sua compreensão. A revisão sobre as várias teorias e formas de encarar e de escrever a História está excelente e faz reflectir. Quanto aos vários cenários apresentados, o menos interessante pareceu-me o primeiro, o da América britânica, e a conclusão, com a sua "História alternativa", está muito engraçada. Também sempre me fascinou até que ponto o evoluir da História é determinista ou dependente do acaso, e a minha opinião actual é que é um misto de ambos - a tendência geral é determinista, mas com grandes variações a curto / médio prazo dependentes do acaso, nomeadamente de factores relacionados com os indivíduos. No fundo penso que acaba por ser também a posição de Niall Ferguson, ao ler a conclusão - apesar de vários cenários diferentes ao longo do tempo, o curso geral da História não ficava muito diferente. Ou será porque conhecendo a História que foi se torna quase impossível imaginar algo de completamente diferente a longo prazo? Com efeito, se os desvios se sucedessem e potenciassem, a certa altura quase tudo seria possível de imaginar, o que começa a ser inútil para a análise e compreensão do que de facto aconteceu..
Gostei imenso de Norwegian Wood. Haruki Murakami está actualmente muito na moda; eu tinha lido dele há uns anos A Wild Sheep Chase (traduzido recentemente em português como Em Busca do Carneiro Selvagem...) e não tinha gostado muito - escrita interessante, mas não me prendeu especialmente e achei-o no geral um pouco maçador e pretensioso. Mas Norwegian Wood é muito bom, um livro intimista e terno, com personagens e situações extremamente bem construídas e reais, uma história agridoce de nostalgia e crescimento, e uma escrita sóbria e cativante. Depois deste, fico com vontade de ler mais Murakami.
Este é daqueles livros de que não sei como dizer que gostei, porque o gostar aqui não se refere a nenhum prazer estético (nem de qualquer outro tipo, a não ser talvez o de conhecer, de saber, de tentar compreender). O livro é excelente para quem se interesse pela questão do nazismo e das atrocidades nazis, e de como foi possível. E a leitura das entrevistas a vários acusados e testemunhas do Julgamento de Nuremberga é mais um elemento, e não para simplificar. Sinto sempre uma espécie de horror gelado misturado com um fascínio doentio sobre esta questão, porque de facto foi tão horrível que desafia o entendimento. As declarações dos nazis revelam duas tendências comuns a quase todos - o afectarem desconhecimento do que se passava com os judeus (temperado por aquela tão humana mania de acrescentarem: "eu até tinha amigos judeus" ou "sempre ajudei pessoalmente os judeus") e o empurrar as responsabilidades para os ausentes (geralmente Hitler, Himmler e Bormann). E depois é a forma espantosa como descrevem tudo o que aconteceu como normal, banal, burocrático, o que atinge o expoente do horror / absurdo nas declarações de Rudolf Hoess, Julius Streicher e Otto Ohlendorff. Arrepiante.
quarta-feira, agosto 15, 2007
Férias
Acho que nunca passei nenhuma estadia na praia em que fosse tão pouco à praia. Por um lado, o tempo não estava muito quente, por outro cada vez aprecio menos estar muito tempo na praia - o ideal para mim agora é chegar a uma hora de calor, tomar banho e nadar um pouco, secar-me a um sol quente, voltar à água quando recomeço a sentir-me quente, repetir este procedimento duas ou três vezes e ir embora. Quão longe me sinto dos tempos em que passava (com gosto) horas e horas na praia, a ler e a aboborar ao sol!
De qualquer forma, soube-me bem esta estadia no Algarev - prefiro o tempo assim, moderado, li um pouco, dormi imenso, e sobretudo passei muito tempo com o meu cão, que acho que só agora sinto verdadeiramente como o meu cão, com o mesmo género de afecto que tive pelo seu saudoso predecessor.
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