terça-feira, janeiro 30, 2007

Vermeer, a propósito de Girl With a Pearl Earring


Li recentemente o livrinho de Tracy Chevalier Girl With a Pearl Earring; já tinha visto o filme há cerca de 2 anos. É uma história engraçada, a partir de uma boa ideia e bem desenvolvida. O filme é bastante superior ao livro, em parte porque a escrita é estilisticamente pobre, e mais ainda porque o desenrolar da história está intimamente ligado com os quadros, desde a preparação das cores à sua finalização, de modo que é extremamente visual, pelo que o cinema a transmite melhor do que a escrita. Aliás, o filme é muito bonito, com uma bela fotografia, uma recriação dos quadros de Vermeer esteticamente perfeita e uma Scarlett Johansson magnífica no seu melhor papel.

Mas a principal qualidade, tanto do filme como do livro, é fazerem-me rever as obras de Vermeer. Foi sempre um dos meus pintores preferidos, com as suas cenas tranquilas retratando o quotidiano da burguesia dos Países Baixos no seu século de ouro, em cores puras banhadas numa luz suave e de uma serenidade muito bela. Não há a paixão sombria de Rembrandt, nem o excesso barroco e voluptuoso de Rubens ou o espírito festivo de Hals, mas imagens quase fotográficas das pessoas médias, nem deuses mitológicos nem santos cristãos nem reis e rainhas; apenas burgueses abastados, uma classe relativamente nova e que teve em Vermeer o pintor perfeito para a retratar de forma simultaneamente verdadeira e lisonjeira, em actividades simples e dignas como a tocar música, a ler uma carta, a beber em sociedade ou a arranjar-se ao espelho.

Só lamento nunca ter tido oportunidade de ver estes quadros ao vivo, o que me faz sonhar com uma viagem à Holanda.

domingo, janeiro 28, 2007

O Processo, ou justiça à portuguesa



Tenho evitado escrever sobre o tão badalado caso Esmeralda tal como evitei por algum tempo manifestar-me sobre o referendo à despenalização do aborto – porque me irrita a maneira como as questões hoje em dia são discutidas nos media. Seja qual for o assunto – da despenalização do aborto aos voos da CIA, do caso Casa Pia ao livro de Carolina Salgado, das buscas na redacção de um jornal à adopção por homossexuais – as coisas funcionam invariavelmente da mesma forma: é como se um seixo caísse numa poça, provocando regulares e previsíveis ondas concêntricas (na forma de declarações, artigos de informação nem sempre muito informativa, colunas de opinião, trocas de galhardetes, debates televisivos, opiniões do Professor Martelo..., em que cada um ocupa um lugar bem determinado e diz exactamente aquilo que se espera dele, como numa peça de teatro inúmeras vezes representada em que os papéis parecem já mais representados por hábito do que por convicção), cuja intensidade se vai esbatendo até se desvanecer a agitação e ficar tudo como antes. É tudo tão previsível, e tão estereotipado, faz-nos sempre lembrar como vivemos num país de opereta.

Mas, tal como no caso do referendo, em que a indignação contra a hipocrisia levou a melhor sobre a minha contenção, também neste caso da menina entre famílias me apetece dar a minha opinião, porque se trata de assunto que me toca particularmente, pois também eu já passei pelos retorcidos labirintos das adopções.

E mais uma vez, o que ressalta deste caso é muito menos a “razão” de uma parte ou da outra do que a ineficácia e injustiça do nosso sistema judicial e a impunidade total dos juízes, que se comportam como se fossem uma casta à parte com poderes de direito divino (como tal, indiscutíveis). Porque, quer se favoreça o pai biológico ou a família que quer adoptar, é inaceitável que um processo de que depende a vida de uma criança pequena demore anos. E depois há os habituais elementos bizarros tão característicos da nossa “justiça”, neste caso aplicados ao capítulo particular que respeita crianças / adopções / família.

Em primeiro lugar, é o descrédito generalizado de que o sistema goza junto das pessoas que leva a que um casal que deseja adoptar recorra a “portas travessas” para o fazer. Com efeito, este casal não obteve a criança por vias oficiais, mas directamente da mãe, com uma declaração desta “cozinhada” por eles em que renunciava a quaisquer direitos sobre a filha e permitia a sua adopção por eles, e só depois tentou oficializar a situação. O problema começa logo aqui – desde que a lei obriga a que seja investigada a paternidade de qualquer criança registada sem nome de pai (tendo desaparecido a figura do pai incógnito) por se considerar ter um pai um direito fundamental da criança, esta criança nunca poderia ser adoptada por ninguém enquanto a questão da sua filiação não estivesse resolvida, já que o pai teria um direito à tutela igual ao da mãe e poderia querer exercê-lo (como aconteceu). O casal errou aqui – por ingenuidade apenas? por chico-espertice à portuguesa? provavelmente por uma combinação das duas.

Depois, é o tempo infindável para resolver qualquer coisa – as notificações, as análises e, por fime pior que o resto, as decisões. Como sempre, enfeitadas, acrescentadas e compostas por muitos recursos e trecursos, considerações e protestos, com processos que somam centenas de páginas por qualquer questiúncula. O que levou a que uma questão que surgiu quando a criança ainda não tinha 2 anos se tenha arrastado até estar com quase 6. O que obviamente altera completamente a situação – até os ferozes defensores de que um embrião conta o mesmo que uma criança de 2 anos reconhecerão que os laços familiares criados em 6 anos são mais fortes do que os estabelecidos até aos 2.

Quanto a pormenores, tão característicos do nosso sistema, cito apenas um exemplo, tirado de um jornal no sábado 27 de Janeiro: um casal foi condenado por maus tratos a um bebé de Viseu que deu entrada no hospital aos 50 dias de idade “em coma, com fracturas do crânio, hemorragias intra-cranianas e da retina e lesões do ânus” a 10 e 4 anos de prisão (o pai e a mãe, respectivamente). Comparem-se as penas com os 6 anos de prisão aplicados ao sargento que tenta adoptar a Esmeralda, e que foi preso preventivamente em vésperas do Natal.

Segue-se o queda do seixo na poça e os círculos ondulatórios do costume, com os vários corifeus sacando apressadamente da sua máscara (fixa e imutável, como no teatro grego) para não perderem a oportunidade de cumprir o seu papel.

Por fim, a única vantagem de todo este triste caso é chamar a atenção para o péssimo funcionamento do sistema judicial, para a inimputabilidade dos juízes (tanto mais chocante quanto maior a sua falta de senso, que não é rara) e para o predomínio (quanto a mim injusto e indevido) que a nossa lei confere aos laços biológicos, que levam à manutenção de tantos casos de maus tratos sobre crianças que por vezes terminam com a morte destas.

Já agora, dou a minha opinião pessoal sobre este caso concreto: não simpatizo com nenhuma das partes (apenas com a criança, coitada, que não tem culpa do que lhe acontece) – os candidatos a pais que quiseram contornar com chico-espertice a legalidade, à maneira dos construtores de habitações clandestinas, e depois persistiram nas suas manobras utilizando para engonhar a situação a mesma chicana processual que agora criticam e de que se reclamam as vítimas; o pai biológico que não o queria ser e que assumiu uma postura de arrependido / convertido; a mãe biológica que renunciou acertadamente a uma criança que não podia criar mas que agora não resistiu à oportunidade de ter o seu momentozinho de celebridade e aproveitar para um ajuste de contas; os juízes insensatos e pomposos que vivem aplicadamente noutro planeta. Todos juntos criaram uma bela embrulhada. Penso que o caso devia ter sido decidido há 4 anos, provavelmente a favor do pai biológico caso assegurassem a capacidade deste para exercer a tutela e para desencorajar as adopções à margem do sistema; agora penso que deveria ser decidido a favor da família de facto (a adoptante) a bem da criança, com direitos ao pai biológico semelhantes aos que tem qualquer outro pai com filhos cuja tutela é concedida ao outro cônjuge.

Como todos estes casos – a Esmeralda, o referendo, o Apito, a Casa Pia, o Sistema Nacional de Saúde a saque, o caos do ensino – me entristecem e me desanimam quanto a viver em Portugal...

quarta-feira, janeiro 24, 2007

Hipocrisias

Como me enfurecem as pessoas hipócritas que defendem o não no próximo referendo sobre o aborto, escudando-se em pretensos humanismos e defesas da vida, e ao mesmo tempo afirmam serem contra o julgamento e a punição das mulheres que abortam! Então por que raio votam não? Se é precisamente essa a questão? Porque por mais evasivas e tergiversações com que essas pessoas enfeitem os seus discursos, com argumentos imbecis como "não há mulheres presas por aborto" e outros que tais, é isso que se pretende mudar - a lei que permite julgar e condenar a pena de prisão as mulheres que abortam. Não as julgam? Não as prendem? Mas podem fazê-lo, e em princípio devem. Portanto, se essas virtuosas pessoas discordam da lei, votem sim, ou então não digam que discordam. Porque nada as impede de depois propor outras leis, as tais para estabelecer regras e limites para as comparticipações, etc, mas não é isso que está em causa agora, apesar do que dizem, com a sua pretensa sensibilidade e previdência. Não há pachorra!!

Janeiro



Sempre gostei especialmente do mês de Janeiro. Gosto do frio claro e limpo das manhãs de sol de Inverno, com a sua luz transparente ou meio neblinosa; daquele frio intenso que faz a face contrair-se e deixa os dedos entorpecidos, mas enrijece e nos faz sentir mais vivos. Lisboa é particularmente bonita nessas manhãs. E por pouco que se ligue às mudanças do calendário, é o início de um novo ano, o que associado ao clima revigorante faz a vida parecer mais leve e mais fácil e que muito (já não consigo pensar "tudo") ainda é possível.

terça-feira, janeiro 23, 2007

Marley & Eu, de John Grogan

Este Natal, uma amiga que estava ao corrente da minha aquisição de um novo cãozinho em curso ofereceu-me o livro Marley & Eu, de John Grogan. É um livro engraçado, especialmente apelativo para quem gosta de cães, e foi um presente muito apropriado. Uma história bem contada, divertida, por vezes comovedora, nomeadamente nas partes inicial e final, quando Marley é cachorrinho e quando está a morrer. Tendo perdido o meu velho cão há poucos meses e com um novo cachorrinho em casa há 1 semana, obviamente revi as minhas experiências e sentimentos. Conviver com um cão é uma delícia, o seu instinto de matilha é canalizado para nós em forma de uma torrente de amor e dedicação incondicionais que são o melhor antidepressivo do mundo. E perdê-lo é profundamente triste, como perder um amigo, simultaneamente parte da família, de nós.

Aconselho a leitura a todos os que acreditam que os animais de estimação são um conributo fundamental para o nosso bem estar e felcidade e enriquecem a nossa vida - e de forma simples e ecológica!

domingo, janeiro 21, 2007

How weird are you?

You Are 50% Weird
Normal enough to know that you're weird...But too damn weird to do anything about it!

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Guerra e Paz, de Lev Tolstói, relido


Não me lembro exactamente de quando li pela primeira vez Guerra e Paz, provavelmente por volta dos 17 - 18 anos, mas lembro-me de que gostei na altura mas pensei no final: "é só isto?". Esta relativa decepção deveu-se a dois factores: primeiro, tinha lido Ana Karenina aos 14 anos e tinha sido um verdadeiro amor à primeira vista, e depois a aura de fama que rodeia Guerra e paz é tão grande que suponho que esperava algum tipo de revelação ou deleitamento que não aconteceu (já quando li um pouco mais tarde Em Busca do Tempo Perdido, outro livro envolto numa aura mítica, as minhas expectativas foram fantasticamente excedidas). Recentemente, a propósito da nova tradução e da minha reaproximação à literatura russa desde a descoberta de Dostoievski, reli-o.

Desta vez, fui surpreendido no sentido oposto. Quase a cada página, dei por mim a pensar: "mas isto é tão bom! Como foi possível não ter percebido antes?". Li os quatro volumes a uma velocidade inesperada, tendo em conta que os horários da vida profissional dificilmente se conciliam com a leitura de livros muito longos, que têm de ser mesmo bons para se conseguir embarcar neles sem desvios, longas pausas ou mesmo desistências.

De facto, Guerra e Paz é mesmo uma obra-prima, amplamente merecedor de toda a fama que tem. Tolstoi mostra uma extraordinária capacidade de conciliar uma visão de conjunto inteligente e lúcida com uma minúcia e perspicácia na descrição (criação, uma vez que se trata de ficção) de sentimentos, situações, atitudes, que tornam as suas personagens, cenas e diálogos extremamente credíveis e reais - do género que nos faz pensar com surpresa e deleite "mas é mesmo assim!".

Um aspecto que admiro imenso em Tolstói é o seu conceito das causas dos acontecimentos históricos, a forma como ele analisa com lucidez e sensibilidade a complexa rede de causas e efeitos e a dependência das teorias do ponto do observador e do distanciamento no tempo, numa altura em que não se conheciam os conceitos de relatividade ou de efeito de borboleta nem as teorias do caos. A sua análise lógica leva-o a duas conclusões possíveis - a da falta de sentido de tudo, ou seja, a de que tudo é como é porque a sequência lógica dos acontecimentos desde sempre o determinou, ou a de que existe um sentido que está tão para além do nosso conhecimento que não fazemos a mínima ideia dele. Isto leva obviamente à noção da existência de um deus cujos desígnios desconhecemos, e é possível que ele acreditasse nisso, mas mais uma prova da sua honestidade intelectual é que nunca o afirma (o que de resto seria perfeitamente razoável num homem do século XIX), limitando-se a apresentar os seus raciocínios e a deixar a conclusão ao leitor - no meu caso, obviamente, opto pela primeira.

Para terminar, e já que tenho também falado dela, deixo a palavra a Virginia Woolf:

"Life dominates Tolstoy as the soul dominates Dostoevsky. There is always at the centre of all the brilliant and flashing petals of the flower this scorpion, 'Why live?' There is always at the centre of the book some Olenin, or Pierre, or Levin who gathers into himself all experience, turns the world round between his fingers, and never ceases to ask, even as he enjoys it, what is the meaning of it, and what should be our aims." (in The Common Reader)

Ou seja, no fundo, mais uma forma da eterna pergunta: o que fazemos nós aqui?

quinta-feira, janeiro 18, 2007

O meu voto no referendo

Tal como os partidos de direita, acho absurdo que se referende a despenalização do aborto. Só que pelos motivos contrários - em primeiro lugar, discordo que a questão seja referendada, o governo (dito socialista, e com maioria absoluta no Parlamento!) devia simplesmente legislar sobre o assunto. Para piorar as coisas, o primeiro-ministro ainda decidiu que o resultado do referendo será vinculativo, mesmo que a participação seja inferior a 50%, o que além de abrir um péssimo e perigoso precedente é um disparate completo - obviamente, se as pessoas não votarem significa que não se interessam particularmente pela questão, o que é mais um motivo para ser decidida no Parlamento. Em segundo lugar, acho completamente anacrónico que áinda se esteja a debater a questão da despenalização do aborto, ou seja, se as mulheres devem ser julgadas e presas por abortar. Isto é tanto mais absurdo quanto significa equiparar o aborto voluntário a um assassínio, o que automaticamente obrigaria a considerar um assassínio um aborto realizado segundo a lei actual (porque se abortar é assassinar, é evidente que as situações actualmente autorizadas não o deveriam ser, porque o produto de uma concepção por violação ou portador de deficiência vale tanto, em si, como outro qualquer), o que é um paradoxo.


E haverá alguém no seu juízo perfeito que ache sinceramente que uma mulher utilize o aborto como meio anticoncepcional de escolha? Já deixando de lado os problemas morais (que são convenientemente ignorados pelos opositores da despenalização, que devem considerar que as mulheres - essas potenciais abortadeiras / assassinas, com a provável excepção de extremosas mães como Maria José Nogueira Pinto - não têm consciência e se lançarão alegremente no caminho do aborto / assassínio para não terem o incómodo de tomar a pílula), será que pensam de facto que alguém escolhe sofrer um processo doloroso e traumatizante e não isento de riscos como opção preferencial?


Enfim, toda esta argumentação anti-despenalização se reveste de uma tal hipocrisia e tartufice que causa náuseas. E sobretudo interrogo-me - mas porque é que estas personalidades fazem isto? Como se conseguirão sentir bem consigo próprias defendendo publicamente o sofrimento, o recurso ao aborto clandestino ou no estrangeiro, esgrimindo argumentos absurdos ou nojentos (os cartazes que proliferam pelas ruas são particularmente desonestos), para quê? Racionalemente,a cho impossível que essas pessoas acreditem no que dizem ou se julguem de facto defensoras da vida de inocentes bebézinhos, e acho incrível como a desonestidade intelectual - e moral - e a ambição da manipulação / rodriguinho políticos pode chegar a este ponto.


Para finalizar, e para o caso de não ter sido claro, gostava que despachássemos de vez este assunto constrangedor (o debate, não o aborto voluntário, que é um recurso desagradável e deprimente, mas por vezes necessário, sendo obsceno estar ainda a culpabilizar as pessoas que já estão em sofrimento), e por isso espero que muita gente faça como eu e vote pela despenalização do aborto.

(E isto não tem a ver com a questão da despenalização, mas lembrei-me porque era um dos assuntos abordados na entrevista de Zita Seabra que li há dias num jornal que encontrei na sala de espera de um consultório. Mas aquela mulher existe mesmo?? Foi sempre uma caricatura - primeiro da estupidez e casmurrice comunistas, depois da vira-casaquice despudorada, agora de quê? Do capitalismo selvagem neocon? Até a sua fealdade disforme é caricatural. Há pessoas mesmo inacreditáveis! Esta devia estar num freak show.)

The Letters of Vita Sackville-West and Virginia Woolf

Como grande admirador de Virginia Woolf, comprei gulosamente esta selecção de cartas, editadas por Louise DeSalvo e Mitchell Leaska, dois estudiosos da escritora e cujo prefácio é interessante e elucidativo, embora demasiado longo. Mas depois o livro não correspondeu às minhas expectativas, principalmente porque contém muito poucas cartas de Virginia Woolf, sendo a esmagadora maioria de Vita Sackville-West. Ou seja, tenho de caçar mais cartas de Virginia Woolf! Apesar disso, gostei, são mais elementos para conhecer uma escritora e uma época que me interessa muito e, mesmo que uma parte significativa do livro trate de encontros e desencontros, o que em si é pouco interessante embora ilustre de forma verdadeira como são as relações humanas, só as partes sobre o nascimento de Orlando ou a discussão a propósito de Three Guineas (que eu imperdoavelmente ainda não li!) valeriam a pena. Tal como muitas outras passagens, sobre vários assuntos - a amizade, as paixões, a escrita, os amigos e conhecidos, a época, a vida familiar - tratados de forma coloquial, perspicaz e afectuosa ou irónica e mordaz.

Para variar, dou a palavra a Vita, sobre a escrita: "...I think about my novel, and a sort of patch-work counterpane is beggining to form, but so far the patches are only laid side by side and I have not yet begun to stitch at them. Is it better to be extremely ambitious, or rather modest? Probably the latter is safer; but I hate safety, and would rather fail gloriously than dingily succeed. Anyhow I don't care for what is 'better', for however many resolutions one makes, one's pen, like water, always finds its own level, and one can't write in any way other than one's own."

(Era o último livro que me restava da "colheita" da CityLights de San Francisco... O que vale é a Amazon.com e muitas outras livrarias online!)


quarta-feira, janeiro 17, 2007

Aumento de família

Finalmente fui buscar o meu tão desejado cachorrinho. Desde a morte do meu velho amigo épagneul que sentia imensa vontade de voltar a ter um cão, um vazio por preencher como acho que só as pessoas que já tiveram um cão compreendem. Até dos passeios matinais e nocturnos sentia saudades.


Nos últimos anos, a minha intenção de sempre de voltar a ter um cão se perdesse o meu sofreu várias oscilações. A causa foi sempre a mesma - os entraves crescentes postos por uma sociedade cada vez mais asséptica e insensata, preocupada com o acessório em detrimento do essencial, e que dificultam a vida aos donos de cães. Não podem estar nos relvados, não podem estar na praia, querem açaimá-los nos transportes, etc, etc. Cultiva-se a noção saloia de que os cães são "porcaria" porque andam com as patas no chão e defecam e urinam - que horror! Como se as pessoas que o dizem não fizessem o mesmo, esquecendo-se que a solução é lidar com isso de forma higiénica e cívica e não suprimir os cães - a velha história de deitar fora o bebé com a água suja do banho. Esquecem-se de toda a felicidade e qualidade de vida que nos trazem, dos inúmeros estudos que demonstram as vantagens de saúde física e mental de ter um cão (como outros animais de estimação) ou para as crianças de crescerem com um. Mas todos estes apóstolos da pseudo-higiene, da pseudo-saúde, da pseudo-segurança, podem ser terrivelmente maçadores no dia-a-dia, e eu muitas vezes não me sentia com vontade de os enfrentar diariamente, e pensava que o melhor mesmo seria não voltar a ter cão.


E quando finalmente a questão se pôs, foi adiada sumariamente até ao próximo Verão, em parte pelo desgosto e luto pelo meu velho amigo, em parte por diversos problemas que me têm mantido ocupado, no mau sentido. Por vezes, os amigos e familiares opinavam sobre o assunto, predominando a corrente do "não te metas nisso, arranjar mais trabalho além dos que já tens?", mas os que melhor me conhecem encorajavam-me, fosse pela ideia de que "ao menos terias alguém em casa a portar-se bem!" ou simplesmente por acharem que me faria mais feliz devido "às boas vibrações". Até que de repente a saudade da sensação do companheirismo, do afecto incondicional, dos passeios partilhados, impôs-se de tal forma que mandei as dúvidas às urtigas e em poucos dias procurei e descobri este pequeno perdigueiro que era então um bebé de mama e que desde há poucos dias está comigo.


Não estou mesmo nada arrependido! É como se bastasse olhá-lo para sentir o coração mais leve, tocar o seu pelo macio e quente e recolher automaticamente os espinhos eriçados ao longo do dia. Neste momento escrevo com um focinho confiantemente adormecido apoiado no meu braço, e esse simples contacto é apaziguador e reconfortante.


Quem, mas quem, resistiria a este cachorrinho?

quarta-feira, janeiro 10, 2007

20,13, de Joaquim Leitão

Gostei de 20,13. Não é um filme do Grande Manoel (felizmente!); é uma história bem contada, bem filmada, interessante, um filme de guerra mais sobre as pessoas apanhadas numa situação de tensão do que sobre a guerra em si. O argumento é bom (apenas a parte dos cacifos está um pouco forçada e pouco clara), as personagens bem construídas e bem defendidas (até o Júlio César está suportável), a época bem recriada. Nunca tinha visto nada de Joaquim Leitão, mas fiquei bem impressionado. Penso que é disto que o cinema português precisa. E Marco d'Almeida, que eu nunca tinha visto trabalhar, e que é possível que ande desperdiçado (mas a ganhar a vida, que também é preciso) por essas inenarráveis novelas televisivas, está excelente, um bom duro que nada fica a dever a tantos outros do cinema americano.


terça-feira, janeiro 09, 2007

Críticas e críticos


Este post vem a propósito da atribuição de estrelas / bolas pelos críticos de cinema nos jornais. Tinha eu visto Babel recentemente, e gostado bastante, quando, ao ler o jornal no fim-de-semana, me surpreendi ao ver que os críticos do mesmo tinham sido unânimes na avaliação: 1 bolinha ou 1 bola preta (o pior da escala)! Fiquei um bocado perplexo; habitualmente não ligo às "notas" dos críticos, e se os leio com alguma regularidade, ao fim de algum tempo são-me úteis, não por seguir as suas opiniões, mas porque lendo o que eles acharam consigo ter uma ideia razoavelmente precisa se vou gostar ou não (o que não significa que concorde com eles; há muitos louvores que me fazem logo perceber que detestaria o filme).


Mas neste caso fiquei surpreendido; ao fim e ao cabo, Babel parecera-me um filme bastante consensual, com muita coisa de que gostar mesmo que não se apreciassem alguns aspectos. Seria eu que estava a ser saloio? Ora ninguém gosta de ser saloio, muito menos quem tem algumas pretensões de inteligência e bom gosto! (Culpado!)


Revi mentalmente os defeitos do filme. Sim, todo o episódio japonês é um bocado fraco, o recurso a uma surda-muda para ilustrar dificuldade de comunicação um bocado óbvio demais. Sim, há muita political correctness - o guia marroquino tão íntegro e bonzinho, a nanny mexicana tão boazinha, a festa mexicana tão feliz e tão pura, os turistas americanos e franceses tão egoístas - e eu até detesto a political correctness. Sim, alguns planos, como os da discoteca em Tóquio, são fracos. Por vezes o ritmo do filme é um bocado lento. E provavelmente se me esforçasse encontraria mais uma meia dúzia de defeitos (ou mais).


Mas, UMA mísera bolinha? Bola preta? O pior possível? Não haverá um ligeiro exagero? Um desejo de ser tão inteligente, tão cool? Certamente são admiradores dos filmes do Grande Manoel! (O Mestre - e aqui curvemo-nos todos reverentemente) Bolas, Babel está longe de ser dos melhores filmes que vi, enferma dos defeitos que referi - mas amplamente compensados pela capacidade de transmitir emoção, de perturbar, o que a political correctness pura nunca faz, pois só consegue ser irritantemente didáctica -, tem inegável mérito artístico (bem filmado, bem interpretado) - é um bom filme! Por acaso, recentemente dera com uma outra manifestação desta característica de irritante pedantismo crítico: uma crónica do Pedro Mexia referia-se a uma lista do Observer de 50 filmes do tipo lista-de-filmes-a-ver-antes-de-morrer, quase totalmente constituída por filmes mais ou menos obscuros, que continha inclusivamente títulos como Tin Cup! (uma xaropada com Kevin Costner) Traduzindo: "ai que inteligentes e cultos nós somos, que vamos desenterrar estes filmes com um mérito estupendo que só nós percebemos!" Ou seja - a velha estratégia de turvar as águas para parecerem profundas, tão querida a mestres (inegavelmente mestres nessa estratégia) como o Grande Manoel, João César Monteiro, Godard e tantos outros...


Para terminar - eu gostei de Babel, e já que os outros classificam, aqui vai a minha nota:



sexta-feira, janeiro 05, 2007

A Rainha, de Stephen Frears


The Queen é um filme interessante e engraçado. O que mais se destaca é obviamente a fantástica interpretação de Helen Mirren, que está perfeita. Também as escolhas para os intérpretes do príncipe Filipe e de Blair estão excelentes. De resto, é uma boa reflexão sobre um estranho período de histeria colectiva, as reacções institucionais às mudanças do mundo e o papel da monarquia britânica actualmente. Os diálogos são inteligentes e bem humorados, com vários pontos hilariantes - como as intervenções da rainha-mãe e várias de Filipe, ou os encontros de Blair com a rainha. Não sei se já há nomeações para os oscares, mas Helen Mirren parece-me desde já uma candidata difícil de bater.

quarta-feira, janeiro 03, 2007

Babel, de Alejandro González Iñarritú



Tal como 21 Grams, também Babel é construído por três narrativas relacionadas, embora neste filme seja fácil perceber quais as relações entre as partes. O tema principal de Babel é a dificuldade de comunicação paradoxalmente crescente num mundo cada vez mais globalizado - mostrada sobretudo no episódio em Marrocos, que tem uma das sequências mais bem conseguidas do filme, quando o autocarro de turistas entra na aldeia do guia e cada habitante vulgar, cada cena do quotidiano, é percebida como uma ameaça latente, em que os turistas parecem uns marcianos completamente estranhos ao mundo em que estão.

Os outros dois temas, o efeito de borboleta (ou seja, os efeitos calamitosos longínquos de uma acção insignificante, assim chamado pelo exemplo hipotético de um bater de asas de uma borboleta em Pequim poder causar um ciclone na América) e a solidão na sociedade hipertecnológica, são ilustrados principalmente pelo episódio americano e pelo japonês, respectivamente. As consequências inesperadas e imprevisíveis de actos casuais são aliás um tema fulcral já em 21 Grams, como de resto em inúmeras obras (livros, filmes) que reflectem sobre a estranheza de vida, as causalidades, o que é e o que poderia ter sido.


Emocionalmente, os episódios americano e marroquino são os mais fortes e os mais tensos, de uma violência latente que nos mantém presos à cadeira à espera da cena seguinte. Não é um filme optimista, mas é extremamente adequado ao mundo em que vivemos.


As interpretações são excelentes na sua sobriedade, sobretudo a da ama mexicana, e a realização das cenas em Marrocos e no deserto californiano magnífica. Fiquei com vontade de ver Amores Perros.