quarta-feira, junho 25, 2008

Metamorfoses, de Ovídio

Metamorfoses, de Ovídio, é um livro delicioso, que já lera na sua maior parte numa velha edição da Europa-América e que reli agora numa tradução e edição bem mais cuidadas publicada pela Cotovia aproveitando a moda em boa hora lançada pelo sucesso da tradução de Frederico Lourenço da Odisseia. É uma espécie de Mil e Uma Noites da mitologia greco-romana (e já agora, para quando uma edição / tradução do mesmo género das Mil e Uma Noites? Ou pelo menos a tradução da famosa tradução de Richard Burton...), organizado da mesma forma, com histórias dentro de histórias, encadeadas umas nas outras, cobrindo todo o tempo desde a criação do mundo até ao reinado de Augusto (a actualidade de Ovídio, que termina o livro com um elogio ao imperador), histórias essas que têm em comum tratarem de metamorfoses, transformações das mais variadas. O autor desenvolve mais ou menos as histórias a seu bel-prazer, e há belíssimas descrições de personagens, de cenas da vida quotidiana, de sentimentos, pastiches de Homero, até uma defesa do vegetarianismo através de um discurso de Pitágoras. No conjunto, é um repositório imenso de lendas e mitos, e não admira que tenha servido de inesgotável fonte de inspiração para artistas ao longo dos séculos.

O que me leva a abordar uma questão em que penso muitas vezes e que por várias vezes tenho discutido com alguns amigos - porquê ler os clássicos? (por acaso é o título de um excelente livro de ensaios de Italo Calvino, e que o explica bem melhor do que eu). Com efeito, deparo-me frequentemente com o argumento: "há tanta informação hoje em dia, tanto que ler, que não há tempo para ler os clássicos" (e aqui, o termo clássicos é aplicado de forma bastante lata, desde Homero a Proust, passando por Mallory, os grandes russos ou - porque não? - Saint-Simon). Discordo totalmente deste argumento. Os clássicos são... bem, é difícil encontrar outra palavra, são clássicos. Por algum motivo suportaram a passagem do tempo, de séculos, mantendo toda a actualidade do seu interesse, tal como a Vénus de Milo ou os frescos de Mantegna se mantêm igualmente impressionantes agora, por muitos anos que tenham. A intemporalidade é precisamente uma das características das obras a que chamamos genericamente "os clássicos". E outro motivo, além do prazer que a sua leitura e fruição provoca, e da sua qualidade intrínseca, nomeadamente sobre a compreensão da natureza humana e de outras questões intemporais, é o da contribuição inestimável para a compreensão do mundo em que vivemos, da actualidade, da História, de tudo o que aconteceu e que nos trouxe até ao momento presente. Por exemplo, apesar de eu ser militantemente anti-religioso, considero fundamental o conhecimento da religião cristã, da Bíblia e das suas histórias e mitos, para a compreensão de grande parte de toda a arte europeia dos últimos dois mil anos, pois de facto esta foi dominada pelas mitologias cristã e greco-romana. Como fruí-la adequadamente se nada se sabe sobre o que a inspirou? Por tudo isto, acho que é hoje em dia igualmente fundamental ler os clássicos, continuo a fazê-lo com prazer, e acho que é tempo muito mais bem empregue do que o passado a absorver tanta da informação inútil e redundante que nos inunda por todos os lados. E quanto mais o tempo passa e mais a leitura do passado me ajuda a compreender e a colocar em perspectiva o presente mais disso me convenço.

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