sexta-feira, dezembro 31, 2010
Postwar, de Tony Judt
Da primeira à última página, um livro soberbo. Uma excelente história da Europa desde o fim da 2ª Guerra Mundial até 2004, apresentando uma visão de conjunto (Europa Ocidental e Oriental), descrevendo e analisando os acontecimentos de forma lúcida e sensata, fazendo-nos compreender os mundo em que vivemos e a essência da nossa civilização. Além disso, uma escrita de uma elegância, clareza e espírito que nada deixa a desejar em relação à escrita das biografias de Lytton Strachey ou dos ensaios de Virginia Woolf ou mesmo da história de Gibbon, o que não é pequeno elogio. Uma verdadeira obra-prima. Tenho lido artigos de Judt na New York Review of Books, sempre com prazer, e ler esta sua obra major foi uma delícia.
domingo, dezembro 26, 2010
City Boy, de Edmund White
City Boy é uma memória inteligente e bem escrita de uma certa Nova Iorque nos anos 60 e 70, da vida boémia do período de libertação sexual (liberdade e libertinagem) que se seguiu ao conservadorismo dos anos 50 e precedeu a epidemia de SIDA nos anos 80. White, que viveu intensamente essa época, descreve-a com franqueza e sem moralismos, com uma certa nostalgia mas também com espírito crítico e humor. Evocando os hábitos e aventuras sexuais a par do seu desenvolvimento como escritor e dos seus contactos com o mundo artístico e literário do tempo, o livro está recheado de pequenos retratos de pessoas conhecidas (como Susan Sontag, Robert Mapplethorpe, James Merrill, Jasper Johns, Peggy Gugenheim) e muitas outras menos conhecidas, cujo conjunto reconstitui um ambiente de forma extremamente vívida, o que é o que torna mais interessante a leitura de memórias. Li pouco de Edmund White (gostei muito de um livro de contos, Esfolado Vivo, e pouco do seu famoso A Boy's Own Story), mas este livro deixou-me mais interessado em ler mais alguma coisa dele. E também tenho vontade de ler a memória de Patti Smith publicada este ano.
O Idiota, de Fiódor Dostoievski
É sempre um imenso prazer ler Dostoievski, e O Idiota é um dos seus grandes livros - e não só no tamanho. Tratando de muitos dos temas habituais no autor - o conflito entre o bem e o mal, a política e a religião, a hipocrisia e a franqueza, a procura da "verdadeira alma russa", os impulsos inconscientes -, o prazer da leitura deriva sobretudo da força da escrita. As personagens fortes, atormentadas e contraditórias, as cenas exaltadas e tempestuosas, os episódios humorísticos, as esplêndidas descrições das interrogações das personagens, mesmo as descrições das crises de epilepsia de Michkin. Não admira a enorme influência que teve sobre os escritores das primeiras décadas do século XX. Tenho estado a reler os seus livros, e estou ansioso por chegar a Os Possessos, de que tanto gostei há muitos anos, foi o livro que me fez apaixonar pela sua escrita.
quarta-feira, dezembro 22, 2010
A History of Reading, de Alberto Manguel
Um livro muito interessante e agradável, que me ofereceram nos meus anos. Um bom título alternativo seria The Joys of Reading, pois é sobretudo disso que trata. O autor é evidentemente um leitor apaixonado, e analisa o modo de ler e a influência da leitura através dos tempos, sem uma ordem cronológica estrita, citando múltiplos autores de várias culturas, abordando temas como a importância da leitura no desenvolvimento e libertação do espírito, a importância das traduções, as literaturas "de género", a leitura como instrumento de aprendizagem ou de puro prazer. Esse prazer da leitura é particularmente bem expresso nesta passagem:
We read to find the end, for the story's sake. We read not to reach it, for the sake of the reading itself. We read searchingly, like trackers, oblivious of our surroundings. We read distractedly, skipping pages. We read contemptuously, admiringly, negligently, angrily, passionately, enviously, longingly. We read in gusts of sudden pleasure, without knowing what brought the pleasure along. "What in the world is this emotion?" asks Rebecca West after reading King Lear. "What is the bearing of supremely great works of art on my life which makes me feel so glad?" We don't know: we read ignorantly. We read in slow, long motions, as if drifting in space, weightless. We read full of prejudice, malignantly. We read generously, making excuses for the text, filling gaps, mending faults. And sometimes, when the stars are kind, we read with an intake of breath, with a shudder, as if someone or something had "walked over our grave", as if a memory had suddenly been rescued from a place deep within us - the recognition of something we never knew was there, or of something we vaguely felt as a flicker or a shadow, whose ghostly form rises and passes back into us before we can see what it is, leaving us older and wiser.
Como leitor apaixonado que também sempre fui (há quem me chame "papa-livros"...) sinto-me imensamente identificado com isto.
E não consigo deixar de transcrever uma citação de Virginia Woolf, que já lera no texto original (um ensaio em The Common Reader), e que já então me deliciara:
I have sometimes dreamt that when the Day of Judgement dawns and the great conquerors and lawyers and statesmen come to receive their rewards - their crowns, their laurels, their names carved indelibly upon imperishable marble - the Almighty will turn to Peter and will say, not without a certain envy when He sees us coming with our books under our arms, 'Look, they need no reward. We have nothing to give them. They have loved reading'.
We read to find the end, for the story's sake. We read not to reach it, for the sake of the reading itself. We read searchingly, like trackers, oblivious of our surroundings. We read distractedly, skipping pages. We read contemptuously, admiringly, negligently, angrily, passionately, enviously, longingly. We read in gusts of sudden pleasure, without knowing what brought the pleasure along. "What in the world is this emotion?" asks Rebecca West after reading King Lear. "What is the bearing of supremely great works of art on my life which makes me feel so glad?" We don't know: we read ignorantly. We read in slow, long motions, as if drifting in space, weightless. We read full of prejudice, malignantly. We read generously, making excuses for the text, filling gaps, mending faults. And sometimes, when the stars are kind, we read with an intake of breath, with a shudder, as if someone or something had "walked over our grave", as if a memory had suddenly been rescued from a place deep within us - the recognition of something we never knew was there, or of something we vaguely felt as a flicker or a shadow, whose ghostly form rises and passes back into us before we can see what it is, leaving us older and wiser.
Como leitor apaixonado que também sempre fui (há quem me chame "papa-livros"...) sinto-me imensamente identificado com isto.
E não consigo deixar de transcrever uma citação de Virginia Woolf, que já lera no texto original (um ensaio em The Common Reader), e que já então me deliciara:
I have sometimes dreamt that when the Day of Judgement dawns and the great conquerors and lawyers and statesmen come to receive their rewards - their crowns, their laurels, their names carved indelibly upon imperishable marble - the Almighty will turn to Peter and will say, not without a certain envy when He sees us coming with our books under our arms, 'Look, they need no reward. We have nothing to give them. They have loved reading'.
domingo, dezembro 12, 2010
Fim-de-semana em Amesterdão
Aproveitei uma folga de banco para uma curta viagem a Amesterdão, que ainda não conhecia. Soube-me muito bem - é uma cidade muito agradável, bonita e com um ambiente descontraído, muito turística e cosmopolita.
O tempo estava muito frio, o que foi bom, já que em vez de chuva tive neve em abundância, e no último dia a temperatura subiu, permitindo ver a cidade numa luz mais clara e derretendo a neve - o que tornou andar pelas ruas escorregadias algo perigoso, mas consegui não cair nunca (não admira que usassem tanto tamancos!).
O centro da cidade é relativamente pequeno, pelo que pude andar sempre a pé, que é a minha forma preferida de conhecer uma cidade. A neve obrigou-me a comprar um boné e um chapéu-de-chuva, e a entrar em lojas e cafés de 10 em 10 minutos, mas valeu a pena pela beleza tão diferente do que alguma vez vemos em Lisboa. E há imensos cafés muito simpáticos, onde nos podemos recompor com capuccinos ou vinho aquecido...
Gostei particularmente da arquitectura tradicional, as fachadas ao longo dos canais, todas parecidas mas subtilmente diferentes, e algumas bizarramente tortas, com um aspecto quase saído do filme Dr. Caligari.
Apesar da neve, a cidade estava bastante animada e cheia de turistas - e felizmente com poucas bicicletas a circular. O tão famoso Red Light District atrai os previsíveis turistas barulhentos, e as raparigas das montras eram bonitas, mas o tipo de exposição é degradante - não é seguramente uma característica de Amesterdão que me atraia.
Last but not least, gostei imenso do Museu Van Gogh e do Rijksmuseum (este reduzido às obras principais devido a obras), e tive muita pena de não poder ver o Stedelijk, cuja colecção está fechada também por obras - aliás, havia imensas obras por todo o lado.
Brasileiras confusas
Outro dia, em conversa com um amigo a propósito de indecisões, recordámos uma personagem da telenovela O Casarão, aliás a melhor que me lembro de ter visto; Lina, interpretada por Renata Sorrah, que era uma mulher "moderna" e que passava grande parte do tempo dizendo "estou tão confusa...".
Por associação de ideias, lembrei-me de outras manifestações de confusão de mulheres brasileiras, e achei que é uma injustiça a arte poética dessa grande actriz que era (é?, nunca mais ouvi falar dela) Bruna Lombardi, pelo que aqui publico esta pérola literária da sua autoria:
Eu não sabia o que fazer, e abri a blusa.
Mais tarde eu ia dizer: foi sem pensar.
Ele me achou desnorteada, confusa,
Como acharia qualquer mulher que abre a blusa
E faz tudo que eu fiz só pra agradar.
Minha cabeca não era mesmo muito certa.
Mulher esperta eu nunca fui, mas deveria
Saber me colocar no meu lugar.
Não adiantava nada, eu era assim desatinada,
O tipo de mulher que faz as coisas sem pensar...
Você agora, me ouvindo contar essas histórias,
Talvez me ache também um pouco confusa.
E eu, que faco tudo pra agradar,
Já sem saber o que fazer, abro minha blusa,
Como faria qualquer mulher confusa em meu lugar!
Mas a confusão feminina brasileira vem de longe, como o prova esta outra pequena jóia poética de Cecília Meireles (que pode assim ser considerada uma precursora da bela Bruna), que recordo dos livros de Português dos tempos de escola:
Ou se tem chuva e não se tem sol
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo!
terça-feira, novembro 09, 2010
Istambul - Memórias de uma Cidade, de Orhan Pamuk
Mais um livro sobre Istambul, desta vez de Orhan Pamuk, de quem já li O Meu Nome é Vermelho e Neve. Gostei muito - o autor insere as suas memórias pessoais de natural de Istambul com a história da própria cidade, apresentada numa série de pequenos episódios, histórias, pontos de vista de estrangeiros e de escritores nativos, profusamente ilustrada com velhas fotografias a preto e branco e gravuras do século XIX. Istambul é-nos assim descrita como um puzzle, um mosaico, em que o elemento principal é uma tristeza / nostalgia do glorioso passado imperial otomano perdido, de um desejo de ocidentalização sobreposto a uma cultura extremamente rica e original mas decadente, simbolizada pelas yalis e konaks, as velhas mansões de madeira otomanas, que vão desaparecendo em incêndios. Essa tristeza / nostalgia istambulense, hüzün, permeia todo o livro, tal como o amor pela cidade e os contrastes que a definem. Talvez para um habitante de Lisboa, uma cidade também assombrada por um passado glorioso perdido, embora mais longínquo, seja mais fácil compreender a essência do hüzün. Estou satisfeito por ter deixado a leitura deste livro para depois de ter visitado Istambul e visto as ruas de Fener e as casas de madeira arruinadas - as que restam. Muito bom.
segunda-feira, novembro 08, 2010
I Claudius - a série da BBC
Vi esta série da BBC aos 13 anos, ainda na televisão a preto e branco, e foi na altura uma revelação - fiquei fascinado, o mundo romano, que até então conhecia dos livros do Astérix e dos volumes de uma história universal para crianças, ganhou de repente vida, naquela história cheia de intriga, excessos, violência. Li o livro de Robert Graves assim que foi publicado pela Bertrand, depois os 12 Césares de Suetónio que estava na biblioteca do meu pai, muito mais tarde os Anais de Tácito e a História Augusta, entre muitos outros livros e filmes sobre a época romana. Nunca mais tinha visto a série, até agora a rever em dvd. Em alguns aspectos envelheceu um pouco - toda filmada em estúdio, a técnica da caracterização evoluiu imenso desde então, mas globalmente continua excelente. O livro está muito bem adaptado, a série conserva a combinação de humor e horror que torna o livro de Graves tão cativante, e as interpretações, se bem que por vezes um tanto teatrais, são no conjunto soberbas: Derek Jacobi como Cláudio, Siân Phillips como Lívia, John Hurt como Calígula, Patrick Stewart como Sejano, etc. É sempre um prazer rever esta série, é de facto excelente.
sexta-feira, novembro 05, 2010
Aziyadé, de Pierre Loti
Nunca tinha lido de Pierre Loti, mas fiquei com vontade de o fazer, depois de ter estado no Café Pierre Loti em Istambul, de modo que procurei no inesgotável gutenberg project e li online o livrinho Aziyadé, de 1879, sobre a sua estadia nessa cidade. É um texto agradável, de um orientalismo muito à século XIX, repassado de uma nostalgia sensual, e que é engraçado ler conhecendo os lugares evocados - Eyüp, os cemitérios, o Bósforo, o bairro de Pera (actual Beyoglu), Fener, o Corno de Ouro - e imaginá-los no final do período otomano, quando o Império, já em plena decadência, era o sick man of Europe.
domingo, outubro 31, 2010
The Turks Today, de Andrew Mango
Um livro muito bom, de leitura fácil e agradável, e que ajuda muito a compreender o estado actual da Turquia. O autor defende a integração europeia da Turquia, e fá-lo extremamente bem - eu, que sempre fui contra a entrada da Turquia na UE, sinto-me muito menos seguro dessa opinião no final da leitura. Sem dúvida, o conhecimento e a abertura de espírito fazem muito mais pelo progresso e a paz do que os preconceitos e a ignorância... Sobre o revivalismo islâmico, que é o factor que mais nos assusta na Turquia actual, o autor apresenta logo de início uma visão que pretende ser tranquilizadoramente desdramatizante: "The «Sunni renaissance» accompanies and is partly a reaction to the continuing organic secularization of Turkish society, just as Victorian piety developed in counterpoint to the secularization of British society. As in Britain after the industrial revolution, the revival of piety is easing the pain and discomforts of Turkey's modernization. The phenomenon is, arguably, not a sign of a coming clash of civilizations, but a commmon feature in the development of our universal civilization." Será? Há outros factores em jogo, como a situação nos outros países do Médio Oriente e os problemas de (não) integração das minorias islâmicas na Europa (geralmente oriundas de meios rurais, e portanto representativas dos sectores mais atrasados dos seus países). Depois de andar pelos bairros de Besiktas e mesmo de Üsküdar em Istambul, é difícil não ter uma visão mais optimista do futuro civilizacional da Turquia. Enfim, veremos. Mas concordo que o interesse da Europa está mais em aproximar-se da Turquia do que em repeli-la.
domingo, outubro 17, 2010
5 Dias em Istambul
Istambul revelou-se uma agradável surpresa - apesar da muita vontade de visitar os vestígios da antiga Constantinopla e de conhecer os monumentos da capital otomana, a ideia de multidões, trânsito caótico, revivalismo islâmico e vendedores insistentes, desanimava-me bastante.
Chegado à cidade com estas reservas, rapidamente as perdi. No trajecto do aeroporto até ao hotel em Sultanahmet, encontrei-me numa paisagem urbana praticamente igual à dos arredores de Lisboa, e a visão do Mar de Mármara com numerosos barcos era-me completamente familiar. Ficámos num hotel muito central em Sultanahmet, no coração da velha Constantinopla. É a zona mais bonita da cidade, repleta de mesquitas, velhas casas, cafés e restaurantes, lojas e turistas. Depois de um passeio ao acaso pelas ruas para ter uma ideia do ambiente - semelhante ao de qualquer grande cidade turística, com algumas características particulares à cultura local - e de experimentar um sumo de romã dos vendedores de rua e o primeiro chá de maçã (elma çay, delicioso) num dos muitos cafés de mesinhas baixas e almofadas turcas, começámos por visitar um dos monumentos que mais vontade tinha de conhecer: Santa Sofia.
Visitar Santa Sofia, para um amante de História como eu, depois de ler Gibbon, é um sonho tornado realidade, e não me decepcionou minimamente. Não só a estrutura arquitectónica é bela e impressionante - não por acaso serviu de modelo a todas as grandes mesquitas da cidade - como a vastidão do interior é impressionante ainda hoje, 15 séculos depois da sua construção.
Depois de Santa Sofia, visitámos a Basílica Cisterna, uma vasta floresta de colunas romanas com um ambiente mágico. Seguiu-se o palácio Topkapi, onde se entra depois de passar a Sublime Porta (mais uma vez, quantos ecos históricos!). O tão celebrado tesouro, com as suas sumptuosas peças de joalharia e os montes de esmeraldas do tamanho de ameixas impressionou-me menos do que a graciosidade e conforto dos pavilhões e das salas do Harém, com os seus painéis de azulejos e divãs forrados de tapetes turcos, e as primeiras vistas sobre o Bósforo, o Corno de Ouro e o bairro de Beyoglu.
A Mesquita Azul foi a primeira em que entrei. O exterior é belíssimo, com as suas cúpulas sobrepostas, o interior é grandioso e magnificamente decorado com azulejos; a vastidão do espaço disponível para os homens contrasta com a espécie de armário ao longo da parede fechado por painéis de madeira perfurada destinado às mulheres - testemunho de como o lugar das mulheres na religião islâmica se mantém subalterno e pouco dignificado.
O colorido e animado cais de Eminönü, junto à ponte de Galata que atravessa o Corno de Ouro ligando Sultanahmet a Beyoglu (a antiga Pera), é de onde saem os numerosos ferries, invejáveis para quem, como eu, está habituado aos dilapidados barcos da Transtejo. Vendedores de castanhas, de maçarocas de milho, de sanduíches de peixe, homens apregoando os cruzeiros no Bósforo, multidões de citadinos e turistas. Ao lado, a Mesquita Nova (fim do século XVI), e o espectacular Bazar das Especiarias, com a sua abundância de frutos secos, doces, cafés, lâmpadas, almofadas e, claro, especiarias, e a agradável surpresa de, ao contrário das melgas marroquinas, os vendedores turcos nada insistentes, simpáticos e com sentido de humor. Uma verdadeira orgia de cores e cheiros.
Percorremos a Istiqlal Caddesi, uma espécie de Oxford Street em Beyoglu, entrando nas livrarias (onde comprei alguns livros de autores turcos aconselhados pelo empregado) e parando para mais um çay num café onde um homem preparava o café à moda turca, até à Praça Taksim, uma espécie de Martim Moniz hipertrofiado. Uma viagem de metro levou-nos ao distrito financeiro de Levant, uma zona ocidentalizada e incaracterística de arranha-céus e um grande centro comercial moderno onde se entra passando por um detector de metais semelhante aos dos aeroportos - a polícia turca leva a segurança muito a sério, provavelmente em parte devido aos países vizinhos, que incluem o Irão, o Iraque, a Síria, a Geórgia e a Arménia.
Subimos o Corno de Ouro até Eyüp, uma zona sossegada de casas tradicionais e cemitérios à volta de uma mesquita dedicada ao túmulo do porta-estandarte de Maomé. As orações de sexta-feira atraíam multidões de muçulmanos, com tapetes estendidos no pátio da mesquita ampliando o recinto religioso, as mulheres todas de lenço islâmico e muitas de niqab. Um teleférico levou-nos até ao cimo da colina, onde fica o café Pierre Loti, com um interior de divãs e mesinhas baixas e um terraço com uma vista magnífica sobre o Corno de Ouro.
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Fener, o antigo bairro dos cristãos ortodoxos e
judeus, é uma zona sossegada e pobre, com um aspecto quase rural, com galinhas, cordas de roupa estendida, velhas casas de madeira belíssimas a cair de abandono, crianças empreendedoras que nos conduziram à igreja bizantina de Pamakaristos em troca de algumas liras - bem o mereceram, já que eram as pessoas mais bem informadas e com um inglês mais perceptível que ali encontrámos. O bairro de Fatih, onde se concentra a população mais devota e conservadora da cidade, é um pouco opressivo - todas as mulheres veladas, quase todas de niqab, os homens de turbantes, as lojas vendendo os negros chadors e niqabs ou livros de orações e propaganda islâmica.
Depois de Fatih, novamente a animação cosmopolita da zona do Grande Bazar. A mesquita Suleymania estava fechada para obras, só pudemos visitar os magníficos túmulos de Suleimão o Magnífico e da sua consorte Roxelana, uma espécie de Lívia otomana. O labirinto do Grande Bazar, com os seus milhares de lojas, é menos atarente que o Bazar das Especiarias, mas vale a pena visitar, nem que seja pelas numerosas lojas de tapetes.
A subida do Bósforo decepcionou-me; é verdade que há belas casa e palácios, e a Fortaleza da Europa, um castelo do século XV construído antes da conquista de Constantinopla, é muito bonito. Subimos até Kanlica, a terra dos famosos iogurtes, mas gostei muito mais de Besiktas, uma zona animada e completamente ocidentalizada, com miúdos a andar de skate e cafés cheios de jovens de ambos os sexos a jogar gamão e a fumar narguilé, um completo contraste com as mulheres de negro de Fatih. Üsküdar, no lado asiático, é uma zona bastante incaracterística, pouco interessante a não ser pela mesquita (mais uma projectada pelo infatigável Sinan, arquitecto do século XVI responsável por montes de mesquitas em Istambul) e sobretudo pelas vistas sobre Sultanahamet, com o perfil de cúpulas e minaretes que admirámos ao pôr-do-sol.
Cidade de grandes contrastes - as raparigas fumando narguilé em Besiktas e as mulheres de negro em Fatih -, da beleza arquitectónica das mesquitas com as suas cúpulas e minaretes e das casas de madeira mas também de urbanizações tipo J.Pimenta, do canto dos muezzins saindo dos megafones dos minaretes e da música kitsch do pop turco aos berros das lojas de discos, suficientemente ocidentalizada para ser familiar e segura e com sinais de islamismo a cada esquina.
E gatos, gatos por todo o lado, nos pátios das mesquitas, nos cemitérios, nos cafés, brincando com as mercadorias das lojas, instalados nos passeios com a segurança de quem é bem tratado e respeitado por toda a gente.
Fiquei com vontade de voltar, e de conhecer mais da Turquia. Viajar é realmente um dos maiores prazeres da vida.
Chegado à cidade com estas reservas, rapidamente as perdi. No trajecto do aeroporto até ao hotel em Sultanahmet, encontrei-me numa paisagem urbana praticamente igual à dos arredores de Lisboa, e a visão do Mar de Mármara com numerosos barcos era-me completamente familiar. Ficámos num hotel muito central em Sultanahmet, no coração da velha Constantinopla. É a zona mais bonita da cidade, repleta de mesquitas, velhas casas, cafés e restaurantes, lojas e turistas. Depois de um passeio ao acaso pelas ruas para ter uma ideia do ambiente - semelhante ao de qualquer grande cidade turística, com algumas características particulares à cultura local - e de experimentar um sumo de romã dos vendedores de rua e o primeiro chá de maçã (elma çay, delicioso) num dos muitos cafés de mesinhas baixas e almofadas turcas, começámos por visitar um dos monumentos que mais vontade tinha de conhecer: Santa Sofia.
Visitar Santa Sofia, para um amante de História como eu, depois de ler Gibbon, é um sonho tornado realidade, e não me decepcionou minimamente. Não só a estrutura arquitectónica é bela e impressionante - não por acaso serviu de modelo a todas as grandes mesquitas da cidade - como a vastidão do interior é impressionante ainda hoje, 15 séculos depois da sua construção.
Depois de Santa Sofia, visitámos a Basílica Cisterna, uma vasta floresta de colunas romanas com um ambiente mágico. Seguiu-se o palácio Topkapi, onde se entra depois de passar a Sublime Porta (mais uma vez, quantos ecos históricos!). O tão celebrado tesouro, com as suas sumptuosas peças de joalharia e os montes de esmeraldas do tamanho de ameixas impressionou-me menos do que a graciosidade e conforto dos pavilhões e das salas do Harém, com os seus painéis de azulejos e divãs forrados de tapetes turcos, e as primeiras vistas sobre o Bósforo, o Corno de Ouro e o bairro de Beyoglu.
A Mesquita Azul foi a primeira em que entrei. O exterior é belíssimo, com as suas cúpulas sobrepostas, o interior é grandioso e magnificamente decorado com azulejos; a vastidão do espaço disponível para os homens contrasta com a espécie de armário ao longo da parede fechado por painéis de madeira perfurada destinado às mulheres - testemunho de como o lugar das mulheres na religião islâmica se mantém subalterno e pouco dignificado.
O colorido e animado cais de Eminönü, junto à ponte de Galata que atravessa o Corno de Ouro ligando Sultanahmet a Beyoglu (a antiga Pera), é de onde saem os numerosos ferries, invejáveis para quem, como eu, está habituado aos dilapidados barcos da Transtejo. Vendedores de castanhas, de maçarocas de milho, de sanduíches de peixe, homens apregoando os cruzeiros no Bósforo, multidões de citadinos e turistas. Ao lado, a Mesquita Nova (fim do século XVI), e o espectacular Bazar das Especiarias, com a sua abundância de frutos secos, doces, cafés, lâmpadas, almofadas e, claro, especiarias, e a agradável surpresa de, ao contrário das melgas marroquinas, os vendedores turcos nada insistentes, simpáticos e com sentido de humor. Uma verdadeira orgia de cores e cheiros.
Percorremos a Istiqlal Caddesi, uma espécie de Oxford Street em Beyoglu, entrando nas livrarias (onde comprei alguns livros de autores turcos aconselhados pelo empregado) e parando para mais um çay num café onde um homem preparava o café à moda turca, até à Praça Taksim, uma espécie de Martim Moniz hipertrofiado. Uma viagem de metro levou-nos ao distrito financeiro de Levant, uma zona ocidentalizada e incaracterística de arranha-céus e um grande centro comercial moderno onde se entra passando por um detector de metais semelhante aos dos aeroportos - a polícia turca leva a segurança muito a sério, provavelmente em parte devido aos países vizinhos, que incluem o Irão, o Iraque, a Síria, a Geórgia e a Arménia.
Subimos o Corno de Ouro até Eyüp, uma zona sossegada de casas tradicionais e cemitérios à volta de uma mesquita dedicada ao túmulo do porta-estandarte de Maomé. As orações de sexta-feira atraíam multidões de muçulmanos, com tapetes estendidos no pátio da mesquita ampliando o recinto religioso, as mulheres todas de lenço islâmico e muitas de niqab. Um teleférico levou-nos até ao cimo da colina, onde fica o café Pierre Loti, com um interior de divãs e mesinhas baixas e um terraço com uma vista magnífica sobre o Corno de Ouro.
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Fener, o antigo bairro dos cristãos ortodoxos e
judeus, é uma zona sossegada e pobre, com um aspecto quase rural, com galinhas, cordas de roupa estendida, velhas casas de madeira belíssimas a cair de abandono, crianças empreendedoras que nos conduziram à igreja bizantina de Pamakaristos em troca de algumas liras - bem o mereceram, já que eram as pessoas mais bem informadas e com um inglês mais perceptível que ali encontrámos. O bairro de Fatih, onde se concentra a população mais devota e conservadora da cidade, é um pouco opressivo - todas as mulheres veladas, quase todas de niqab, os homens de turbantes, as lojas vendendo os negros chadors e niqabs ou livros de orações e propaganda islâmica.
Depois de Fatih, novamente a animação cosmopolita da zona do Grande Bazar. A mesquita Suleymania estava fechada para obras, só pudemos visitar os magníficos túmulos de Suleimão o Magnífico e da sua consorte Roxelana, uma espécie de Lívia otomana. O labirinto do Grande Bazar, com os seus milhares de lojas, é menos atarente que o Bazar das Especiarias, mas vale a pena visitar, nem que seja pelas numerosas lojas de tapetes.
A subida do Bósforo decepcionou-me; é verdade que há belas casa e palácios, e a Fortaleza da Europa, um castelo do século XV construído antes da conquista de Constantinopla, é muito bonito. Subimos até Kanlica, a terra dos famosos iogurtes, mas gostei muito mais de Besiktas, uma zona animada e completamente ocidentalizada, com miúdos a andar de skate e cafés cheios de jovens de ambos os sexos a jogar gamão e a fumar narguilé, um completo contraste com as mulheres de negro de Fatih. Üsküdar, no lado asiático, é uma zona bastante incaracterística, pouco interessante a não ser pela mesquita (mais uma projectada pelo infatigável Sinan, arquitecto do século XVI responsável por montes de mesquitas em Istambul) e sobretudo pelas vistas sobre Sultanahamet, com o perfil de cúpulas e minaretes que admirámos ao pôr-do-sol.
Cidade de grandes contrastes - as raparigas fumando narguilé em Besiktas e as mulheres de negro em Fatih -, da beleza arquitectónica das mesquitas com as suas cúpulas e minaretes e das casas de madeira mas também de urbanizações tipo J.Pimenta, do canto dos muezzins saindo dos megafones dos minaretes e da música kitsch do pop turco aos berros das lojas de discos, suficientemente ocidentalizada para ser familiar e segura e com sinais de islamismo a cada esquina.
E gatos, gatos por todo o lado, nos pátios das mesquitas, nos cemitérios, nos cafés, brincando com as mercadorias das lojas, instalados nos passeios com a segurança de quem é bem tratado e respeitado por toda a gente.
Fiquei com vontade de voltar, e de conhecer mais da Turquia. Viajar é realmente um dos maiores prazeres da vida.
Life With a View - A Turkish Quest, de Toni Sepeda
Um dos prazeres que tiro das minhas viagens é comprar livros nos sítios que visito e depois lê-los - ficção por escritores do país ou livros sobre o mesmo. Istambul não foi excepção, comprei vários livros nas boas livrarias da Istiqlal Caddesi (várias com excelentes selecções em inglês), e o primeiro que li foi Life With a View, de Toni Sepeda. É o relato das peripécias de um casal americano que constrói uma casa de férias na costa do Mar Negro, perto de Istambul. É um livro engraçado, que me lembrou um outro semelhante sobre Portugal - Uma Casa em Portugal, sobre a remodelação de uma casa numa aldeia perto de Sintra por um casal de americanos - algo paternalista, mas ressumando um grande afecto pelo país de adopção, neste caso a Turquia, cuja sociedade e valores ajuda a compreender pelas experiências da narradora. Esta revela uma série de características muito típicas dos americanos, temperada por uma cultura e experiência de expatriação na Europa (vive há muitos anos em Veneza), que se traduz na atitude paternalista que referi (algo no género mas-que-queridos-que-são-estes-turcos-e-como-aprendemos-com-os-seus-costumes-mas-continuamos-a-ser-mais-sensatos-e-evoluídos). Penso que a autora discordaria provavelmente desta minha crítica, mas a analogia com o livro sobre Portugal facilita colocarmo-nos na perspectiva de um turco a ler este livro. De qualquer forma, é um livro agradável de ler, por vezes um pouco repetitivo e demasiado preenchido por alusões ao refinamento cultural da autora, que se torna aqui e ali um tanto snob, mas globalmente simpático e informativo sobre a Turquia.
terça-feira, outubro 12, 2010
Intenção de Greve
Nunca aderi a nenhuma das muitas greves de médicos que tiveram lugar ao longo dos anos desde que comecei a trabalhar (isoladas ou integradas em greves de outros trabalhadores, como funcionários públicos). Não porque ache que os médicos não têm o direito de fazer greve, mas porque, dadas as características particulares do nosso trabalho – nomeadamente a forma como afecta o bem estar imediato das pessoas e o impacto emocional, e os custos humanos para os doentes e para nós de o adiar – sempre pensei que deve ser um recurso a utilizar o menos possível. E até agora, sempre achei os motivos invocados para as diversas greves insuficientes para as justificar.
Desta vez, no entanto, tenciono aderir à greve geral de 24 de Novembro. Por dois motivos:
Primeiro, porque novamente vão ser preferencialmente afectados os funcionários públicos, passando mais uma vez a mensagem de que são uns parasitas e ineficazes, quando o motivo porque se vai buscar aí o dinheiro e não aos bancos e à evasão fiscal é por ser muito mais fácil. No caso particular dos funcionários públicos médicos como eu, estas medidas vêm reforçar a já caricata situação em que nos encontramos: há vários anos que os quadros estão fechados, mas como continuam a ser precisos médicos para o SNS funcionar, estes vão sendo admitidos com contratos individuais de trabalho. Tecnicamente, não pertencem à Função Pública, apesar de trabalharem para o Estado. Na prática, são admitidos a ganhar mais do que as pessoas do quadro, que são mais antigas na instituição e geralmente seus superiores hierárquicos, e o ordenado pode variar significativamente entre pessoas com a mesma diferenciação e qualidade técnica, já que é ditado pela necessidade da instituição empregadora no momento do contrato e pela habilidade negocial do contratado. Quando os cortes dos vencimentos tiverem lugar, estes “não funcionários públicos” não serão afectados, o que ainda vai aumentar mais a desvantagem salarial dos médicos funcionários públicos. A consequência será provavelmente nova debandada dos médicos mais diferenciados e qualificados do SNS, que serão substituídos por novos “não funcionários públicos” de qualidade inferior e que irão ganhar mais do que os que saíram.
Segundo, porque estas medidas, mais uma vez, não vão resultar, e estou saturado dos dogmas que os governos ocidentais nos últimos anos nos têm incessantemente pregado, aplicando-os em nome “dos mercados”, essa nova religião, provocando uma espiral descendente que só favorece os bancos e os especuladores. Até eu, que percebo muito pouco de Economia, já percebi que estas medidas vão apenas piorar o nosso nível de vida para dentro de um ano “os mercados” novamente dizerem que Portugal apresenta poucas perspectivas de crescimento e tudo se repetir, como está a acontecer em outros países. Por isso acho que temos de nos opor a esta atitude persistente de autismo político, a esta religião saloia que está a destruir activamente o modo de vida que permitiu o período de maior e mais prolongado bem-estar que a Europa conheceu.
sexta-feira, agosto 27, 2010
100 Cidades de Todo o Mundo Contra a Lapidação
Amanhã vai ter lugar a iniciativa 100 Cities Around the World Against Stoning, um protesto organizado pela sociedade civil contra a lapidação no Irão de uma mulher de 43 anos, Sakineh Ashtiani, condenada pelo crime de adultério. A causa é meritória; a pena de morte é quanto a mim errada em qualquer circunstância, e neste caso ainda agravada pelo método bárbaro que, não só provoca sofrimento prolongado e gratuito, como sobretudo representa a defesa de um regresso ao passado no que ele tem de pior - práticas bárbaras implementadas para fortalecer um regime politico-religioso obscurantista e belicoso.
Nunca fui o género de pessoa de participar em manifestações ou protestos públicos, por inércia, por feitio... Acho no entanto importantes estas iniociativas da sociedade civil e acredito que têm resultados mais cedo ou mais tarde, por chamarem a atenção para este tipo de situações e criarem um clima de pressão internacional que já tem sido útil em muitos casos semelhantes. Desta vez estou particularmente envolvido porque a participação portuguesa se deve a uma iniciativa de um grande amigo meu, que organizou tudo com a colaboração de contactos/amigos da sua rede de facebook (com especial ajuda dos elementos do blog jugular), de modo que tenho assistido de perto a todo o processo.
E hoje fiquei verdadeiramente estarrecido com os comentários de leitores à notícia sobre o evento no site da TSF. O meu amigo já me tinha mostrado comentários e mails recebidos na página do grupo da organização do protesto no facebook e no blog jugular, em que os organizadores eram acusados desde de terem intenções políticas ocultas a serem ferozes sionistas. E no site da TSF podem ler-se comentários como estas pérolas:
"Cada País tem a sua cultura, as suas regras e as suas leis. Esta senhora ao cometer este crime já sabia de antemão o que a esperava. Condeno sim a intromissão nos assuntos internos do Irão."
"Já visitei o Irão e posso-vos dizer que é um país maravilhoso. Estas leis podem parecer bárbaras no Ocidente mas por lá resultam e mantém a dignidade e disciplina."
"Vergonha é o mundo Ocidental Capitalista querer impor os seus modos de vida priviligiando a traição, vaidade e arrogância. Deixem o Irão em paz...depois queixem-se..."
Há mais, mas para exemplo chega. Perplexo, interrogo-me: mas será que estas pessoas acreditam realmente no que dizem? Concordarão com a lapidação? Com o direito de praticar a barbárie "porque é a cultura deles"? É indiferença? Relativismo cultural e political correctness levados às últimas consequências? Não me custaria a perceber que não se envolvessem no assunto e que este lhes fosse indiferente, mas manifestarem-se a favor da lapidação?
Outra crítica frequente é a de que há muitos casos de atentados aos direitos humanos, que este é só mais um e porque não se manifestam contra os outros. Este tipo de crítica sempre me irritou - pois, há muitos outros casos, mas isso em nada diminui este, e cada caso serve como alerta e precedente para outros, e se Sakineh é só mais uma das vítimas da barbárie, se o protesto internacional servir para ajudar a salvá-la, isso será um passo em frente que ajudará os próximos casos. E de qualquer forma, não se está a falar dos outros casos, mas deste, e em que é que a existência dos outros desculpa este?
Enfim, com tudo isto, o resultado foi ficar convencido a, ao contrário do que é o meu hábito e a minha tendência, ir ao Largo Camões amanhã às 18:00. Ao fim e ao cabo, é o mínimo que posso fazer, não só pela infeliz Sakineh e outras como ela, mas para apoiar o meu amigo e os outros que desinteressadamente dedicam o seu tempo e esforços para tentar melhorar um pouco o mundo e ainda têm que ouvir semelhantes atoardas.
(O cartaz de Ana Vidigal está belíssimo.)
quarta-feira, agosto 25, 2010
Contos Completos II, de John Cheever
Há muito tempo que tinha curiosidade de ler alguma coisa de John Cheever; escolhi o segundo volume dos Contos Completos porque estava em exposição na fnac e dizia incluir um dos seus melhores contos, O Nadador. Foi uma agradável surpresa. Cheever escreve muito bem, e consegue em contos de poucas páginas criar um ambiente e transmitir um clima emocional verdadeiro que nos toca. Não é tão bom como Raymond Carver, que é para mim o melhor escritor de contos americano, mas é muito bom e vale a pena ler.
segunda-feira, agosto 23, 2010
Viagem aos Açores
Em Julho, voltei aos Açores, 14 anos depois da minha primeira estadia nas ilhas. Estive no Faial, no Pico e em São Miguel. Não conhecia a ilha do Pico: muito sossegada, vi as famosas vinhas do Pico e pouco do interior devido ao nevoeiro. Gostei de rever o Faial, cujo interior estava igualmente muito nublado, pelo que não consegui rever a caldeira, mas a costa estava desencoberta, de modo que demos a volta à ilha, vimos os Capelinhos, tomámos banho na Praia do Almoxarife, e bebi novamente os famosos gins tónicos do Peter's Café.
Em São Miguel tivemos sorte com o tempo, quase sempre muito bonito e soalheiro. Nunca tinah visto as Sete Cidades tão luminosas, o vale das Furnas estendia-se brilhante ao sol visto do miradouro do Salto do Cavalo, e apenas sobre a Lagoa do Fogo algumas névoas aumentavam o aspecto agreste e poético daquela que é para mim a mais bela paisagem dos Açores. Achei Ponta Delgada muito mais movimentada do que há 14 anos, e a costa sul com muito mais construção e trânsito.
Foram uns dias calmos, entre paisagens, banhos de mar descendo das rochas para a água azul do Atlântico, banhos nas águas quentes e ferruginosas das Furnas, banhos nas praias de areia preta, refeições abundantes com as várias iguarias açoreanas - o cozido das Furnas, morcela com ananás, alcatra, polvo grelhado, lapas grelhadas, queijadas de Vila Franca do Campo e da Graciosa, bolos lêvedos, queijo de São Jorge, vinhos do Pico.
E, last but not least, foi óptimo ter escapado aos dias da onda de calor de Julho.
domingo, agosto 01, 2010
Lucien Leuwen, de Stendhal
Este é um daqueles livros que esteve muitos anos na minha lista de "livros para ler um dia", desde que li O Vermelho e o Negro e A Cartuxa de Parma, dos quais gostei imenso, principalmente do segundo. Li-o finalmente, depois de comprar um exemplar por 2 euros em Paris, numa banca da Rive Droite.
É um livro estupendo, e fica-se com pena de estar inacabado e dos inevitáveis defeitos que apresenta por não ter sido completado nem revisto pelo autor - algumas passagens repetitivas, alguns detalhes da intriga claramente por aperfeiçoar (como a apressada morte de M. Leuwen, a ausência de Lucien no final, e sobretudo o final da primeira parte, que me fez momentaneamente irritar com o livro, pela sua evidente inverosimilhança, mas a segunda parte é tão boa que rapidamente me reconciliou). Não só está soberbamente escrito, num francês belíssimo, ressumando espírito (no sentido de esprit, wit) por todos os lados, com personagens inesquecíveis, como é sobretudo um retrato implacável e perfeito de dois ambientes - a vida de uma cidade de província na primeira parte e a chicana política na segunda. Qualquer das partes daria por si só um excelente livro.
É um livro estupendo, e fica-se com pena de estar inacabado e dos inevitáveis defeitos que apresenta por não ter sido completado nem revisto pelo autor - algumas passagens repetitivas, alguns detalhes da intriga claramente por aperfeiçoar (como a apressada morte de M. Leuwen, a ausência de Lucien no final, e sobretudo o final da primeira parte, que me fez momentaneamente irritar com o livro, pela sua evidente inverosimilhança, mas a segunda parte é tão boa que rapidamente me reconciliou). Não só está soberbamente escrito, num francês belíssimo, ressumando espírito (no sentido de esprit, wit) por todos os lados, com personagens inesquecíveis, como é sobretudo um retrato implacável e perfeito de dois ambientes - a vida de uma cidade de província na primeira parte e a chicana política na segunda. Qualquer das partes daria por si só um excelente livro.
quarta-feira, julho 28, 2010
Dois livros de Paul Gauguin
Li recentemente Oviri- Écrits d'un Sauvage e Avant et Après, de Paul Gauguin. As partes mais interessantes do segundo estão incluídas no primeiro, que é uma excelente selecção - correspondência, artigos, memórias, e o fabuloso relato sobre o Taiti "Noa Noa".
Gosto imenso da obra de Gauguin, e os seus escritos ajudam a compreendê-la melhor, e ao homem. Apesar de repetidamente se intitular "um selvagem", Gauguin revela-se profundamente civilizado, naquilo que a civilização tem de melhor - a inteligência, a moral, a arte, a busca do conhecimento e da compreensão; e se tentou fugir àquilo que odiava na civilização do seu tempo (aliás, de todos os tempos) - a hipocrisia, a mesquinhez, a pequena autoridade, a igreja - manteve-se sempre em contacto com o seu mundo de origem, e é tocante imaginá-lo doente e refugiado nos trópicos, o mais longe possível da Europa, a ler atentamente o Mercure de France.
Tal como no caso de van Gogh, cuja correspondência com o irmão me levou a procurar estes livros de Gauguin, é deprimente pensar na ironia das dificuldades económicas por que passaram e nos preços obscenos que os seus quadros atingem hoje em dia - pagos pelo mesmo tipo de pessoas que os desprezavam quando eram vivos.
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