Encontrei recentemente no Medscape um comentário de Gil Gaudia que achei interessante, sobre o problema muito actual do regresso em força do fundamentalismo religioso a que estamos a assistir, e que está perigosamente a imiscuir-se no terreno científico. Está bem escrito e chama em tom irónico a atenção para o problema de uma forma muio perspicaz. O título é About Intercessory Prayer: The Scientific Study of Miracles, e transcrevo alguns excertos (a tradução é minha, utilizei propiciatória como tradução de intercessory, penso que exprime o significado pretendido).
"Em Março de 2005, o meu artigo Searching in the Darkness: About Prayer and Medical Cures foi publicado como comentário no Medscape General Medicine. Fui motivado a escrevê-lo após ter visto que havia 15 artigos listados no Medscape sob o tema de “oração propiciatória”, e nessa altura achei difícil de acreditar que tantos investigadores gastassem tempo e recursos nesse empreendimento. Muitos destes estudos eram destinados a investigar a possibilidade de a oração poder influenciar o resultado de uma variedade de condições médicas, desde infertilidade a cirurgia cardíaca.
Na semana passada coloquei a palavra “oração” no motor de busca do Medscape e, para meu espanto, obtive uma lista de 136 artigos. Incrédulo, recorri ao Google com as palavras “propiciatória”, “oração”, “cura” e “medicina” e obtive 206000 resultados."
"Ao fazer investigação sobre os efeitos da oração, os investigadores médicos estão de facto a tentar estudar a existência de milagres, definidos como eventos extraordinários manifestando a intervenção divina nos assuntos humanos."
"Começo por declarar desde logo que não critico ninguém por rezar por si próprio ou por qualquer outra pessoa se assim o desejar. Nem nego que possa haver alguns benefícios para alguns indivíduos causados pela oração. Esta actividade pode estimular subtis mecanismos psicológicos e fisiológicos que, quando melhor compreendidos, poderão aumentar os benefícios estabelecidos da medicação e da cirurgia, como obviamente acontece nas doenças psiquiátricas. Tal como o efeito placebo, os alegados benefícios da oração podem resultar de sentimentos de bem-estar, optimismo e confiança que resultam de rezar e de práticas semelhantes como meditação ou relaxamento. Concordo que tudo isto pode existir e pode, e possivelmente deve, ser objecto de investigação científica legítima."
"Mas o tema do meu comentário não é a interacção da psicologia e fisiologia. As minhas observações dirigem-se apenas ao que a maioria das pessoas quer dizer quando dizem “Vou rezar por si”, cujo significado implica um pedido para a intervenção de um “poder superior”. O que esta referência à oração significa é que os desejos dos suplicantes serão ouvidos por algum agente e se este for convencido a actuar – o curso dos eventos será mudado para melhor de acordo com a oração. Assim, o significado de “oração propiciatória”, de que trata este comentário, é o estudo da existência de milagres, o que implica o estudo da existência de Deus."
"Há uma incrível ironia em todas as “experiências” anteriores envolvendo a oração propiciatória. Todas elas têm procurado uma evidência do tipo mais trivial que poderia mesmo ser tomada por efeito placebo ou artefacto estatístico, de um alegado Poder de uma magnitude inimaginável. Poder que presumivelmente foi a fonte da espantosa criação de ctenas de biliões de galáxias, que são compostas por centenas de triliões de estrelas, dotadas de singularidades e “buracos negros” possuindo imensa gravidade e esmagando densidades aniquiladoras, todas elas dançando com extraordinária precisão em espectaculares órbitas elípticas sobre uma distância espaço-tempo de 14 biliões de anos-luz; Poder que concebeu sistemas moleculares incrivelmente complexos, compostos de fundações atómicas espantosamente intrincadas, todas operando de acordo com a mecânica da gravidade e de outras forças mal compreendidas que mantêm o núcleo atómico unido enquanto enxames de electrões mantêm o seu equilíbrio à volta de centros incrivelmente densos numa imitação microscópica das maiores galáxias; Poder que orquestrou as leis da propagação da luz e os espectros das cores dispostos em fantasticamente diversos padrões e comprimentos de onda, visíveis e invisíveis.
Entretanto, os investigadores procuram evidência desta incrível imensidade procurando uma diferença dificilmente discernível entre o fluxo arterial de alguns doentes cardiovasculares por quem se rezou e outros infelizes por quem não se rezou... uma diferença na pressão arterial entre um grupo de hipertensos por quem se rezou e outro grupo por quem não se rezou. É como se se pedisse a um compositor com uma capacidade e compreensão musical um quadrilião de vezes superior à de Ludwig von Beethoven que demonstrasse essa capacidade escrevendo as notas de “Three Blind Mice” (ou do “Malhão Malhão”).
Que mesquinho e insultuoso para qualquer divindade que estes investigadores clamam investigar quando o mais que podem pedir a quem criou sistemas biológicos desde algas a Sequoia giganticus e amibas a cérebros humanos “deixa ver se consegues fertilizar este óvulo numa placa de Petri com uma mão atada atrás das costas”."
"Por exemplo, uma experiência muito simples, cujos resultados deixariam pouca ou nenhuma dúvida sobre a eficácia da oração propiciatória poderia envolver a regeneração de um membro amputado. Tudo o que seria necessário seria uma amostra adequada de amputados como sujeitos e um número razoável de crentes que sinceramente rezassem por eles. Estes não deveriam ser difíceis de encontrar. Os investigadores poderiam usar tantas universidades e pessoas quanto possível – todos os crentes sinceros do país se necessário a rezar todos os dias por um ano para que pelo menos um amputado tivesse um membro regenerado e no final desse ano examinar todos os milhares de amputados procurando sinais de membros em regeneração.
Quando desta forma se demonstrasse a regeneração de um único membro então poderíamos ver evidência inequívoca do poder da oração. Este seria um teste real a apresentar perante o objecto imovível, a força irresistível, a omnisciência última, a supremacia omnipotente e omnisciente de que todos os crentes num ser sobrenatural dotam o Arquitecto Supremo. O criador de todo o Universo não deveria ter problemas em recriar um membro."
"Oração propiciatória é um pedido a Deus para mudar de ideias sobre o seu plano já estabelecido para o universo e fazê-lo correr de outra forma. Evidentemente isto implica que os planos de uma divindade perfeita, que teriam por definição de ser perfeitos, devessem agora ser alterados a pedido de um ser imperfeito. Esta é uma razão suficientemente lógica para refutar a possibilidade do efeito da oração propiciatória, uma vez que os seres perfeitos não podem ser influenciados por
falíveis mortais. No entanto, os crentes no poder dos deuses, santos e anjos acham que estes agentes são capazes de alterar ou suspender as bem estabelecidas leis do universo a seu belprazer ou a pedido de um crente através da oração."
Por fim, a conclusão:
"É desanimador ver o número de profissionais supostamente educados e inteligentes que estão envolvidos no processo fútil de tentar investigar o que não pode ser parte do universo físico e portanto não aberto ao exame científico. Como citado no meu artigo anteriro sobre o mesmo assunto, Erasmo de Roterdão descreveu estas pessoas como “procurando na completa escuridão aquilo que de qualquer forma não existe”. Não é o papel dos cientistas desperdiçar o seu tempo e dinheiro (e seguramente não o dinheiro dos contribuintes quando a investigação é financiada pelo NCCAM) investigar “aquilo que não existe de qualquer forma”. De facto na minha opinião aqueles que o fazem deveriam ser considerados “pseudo-cientistas”.
Será que os tentáculos do fanatismo politico-religioso e anti-científico envolveram a investigação médica? Parece-me que forças políticas, financeiras e ideológicas estão por trás do aumento da chamada medicina alternativa e que a oração propiciatória vem à cabeça do movimento."
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