
Não tencionava escrever sobre este assunto, mas posts como este (de médicos, ainda por cima) fizeram-me mudar de ideias. Vem isto a propósito de mais uma medida zelosa do nosso governo que, como a maior parte das que tem tomado, se destinam a desacreditar os profissionais de uma determinada classe e a ter impacto mediático - do tipo "nós vamos pôr isto na ordem" - e, como todas as outras, são suficientes para deixar as pessoas descontentes mas não para resolver o que quer que seja.
Pessoalmente, não tenho dúvidas de que sou frontalmente contra a medida de controlo da assiduidade dos médicos nos hospitais com relógios de ponto, sejam mecânicos, electrónicos ou digitais. Acho que se trata de uma medida claramente destinada a humilhar e a complicar a vida das pessoas, sem qualquer vantagem.
Com efeito, quem ganha com este controlo? Os doentes? A produtividade? Não, servem apenas para reforçar a ideia de que os médicos são uns malandros de uns privilegiados, que querem é sair tarde da cama e safar-se para a privada, deixando os pobres utentes à espera horas a fio por consultas e parasitando o dinheiro dos impostos nada fazendo nos hospitais onde lhes pagam.
É claro que há médicos pouco produtivos, atrasados e mandriões. Como em todas as profissões. Mas não será certamente por picarem o ponto que se tornarão melhores. Por outro lado, o descontentamento será generalizado, e o que é certo é que as pessoas trabalham pior se estiverem descontentes e desmotivadas, o que é o que este governo - na linha aliás dos anteriores - tem trabalhado arduamente para conseguir.
Eu não chego às 8 ao hospital, que é a minha hora oficial de entrada. Porque não é necessário. E saio muitas vezes antes da hora oficial de saída, outras vezes depois, conforme o trabalho que tenho. Em alguns serviços, a pontualidade é importante, como nos blocos operatórios, nos turnos de urgência, nos exames complementares ou consultas marcados. E nesses serviços as pessoas são geralmente pontuais, porque é necessário. Porque ao contrário da ideia que o governo gosta de propalar, e que estas medidas acentuam, os cirurgiões querem operar e não o fazem porque têm pouco tempo de bloco, as pessoas entram a horas nas urgências porque também gostam de ser rendidas a horas, e em geral os médicos gostam do que fazem e são pessoas responsáveis - o curso de Medicina, os internatos, os exames, passa-se por tudo isso porque se tem vontade, não porque é um emprego confortável onde se ganha muito dinheiro.
Ou seja, o que eu quero dizer é que o nosso trabalho não é uma tarefa burocrática com horas marcadas; quando estas existem, a organização da estrutura (hospital, centro de saúde) é o que é necessário para esses horários serem cumpridos. Quando não são, é geralmente por má organização - exames ou consultas marcados em excesso para o tempo disponível, ou para horas em que as pessoas estão obrigatoriamente a acabar outras coisas, ou má coordenação com secretariados ou resultados de exames complementares.
Mas é sempre mais fácil assumir poses de autoritarismo virtuoso e fazer leis que se sabe antecipadamente que não vão ser cumpridas. Essa é aliás uma característica muito portuguesa - a plétora de leis incumpríveis, que nos coloca a todos no papel de transgressores, dependentes do livre-arbítrio das pessoas com poder para punir as transgressões. E é tão conveniente acirrar a opinião pública contra os médicos, enquanto se corrói o Sistema Nacional de Saúde! Porque o que o governo se esquece de dizer é que está a pressionar os médicos para diminuirem os horários, e não para os aumentarem, para pagar menos. Como de resto já fez com os enfermeiros. Como se esquece de publictar as restrições orçamentais que impedem que se utilizem melhores meios, se contrate o pessoal necessário, nomeadamente para cumprir as reestruturações ordenadas pelo próprio governo, como é o caso do novo plano de urgências.
E depois vêm estes burocratas virtuosos aplaudir estas medidas! Ah, como detesto a mania portuguesa (e não só) da honestidade por decreto! Que só tem paralelo na chico-espertice portuguesa de rodear as regras e não cumprir as ditas leis.


Gostei também muito da colecção de desenhos, que não conhecia, e que inclui um magnífico D. Quixote e o moinho, e em geral das figuras de cavalos e galgos, simultaneamente elegantes, fortes e sensuais. As obras de Modigliani expostas são muito belas, sobretudo uma figura de nu em fundo azul e uma cabeça de pedra, que parece uma divindade tutelar poderosa e enigmática. As esculturas de Brancusi, os quadros de Kokoshka, as máscaras africanas, os desenhos de cavalos japoneses, ajudam a compreender a arte e as experiências de Souza-Cardoso. Ver a colecção de livros de arte do pintor lembra-nos que é recente a facilidade de acesso a reproduções fidedignas de arte; naquela época, as fotografias de quadros eram a preto e branco e pouco nítidas; que revelação e experiência fantástica devia ser então a descoberta das obras num museu! Mesmo agora, é diferente ver as obras ou as suas reproduções, mas nada que se compare a esse tempo, em que era necessário ir ao Louvre para descobrir Rubens, a Florença para Botticelli, a Paris e Nova Iorque para os impresionistas, etc... Assim se compreende o impacto que tiveram acontecimentos como as exposições pós-impressionistas em Londres organizadas por Roger Fry, ou os ballets russes de Diaghilev (aliás, também evocados nesta exposição, com os desenhos de figurinos).
O principal defeito da exposição, a meu ver, é a iluminação - pareceu-me em muitas partes mal iluminada, gostaria de ver os quadros inundados de luz e não numa penumbra algo soturna... Mas no geral acho que a exposição está muito boa, e não resisti a comprar o catálogo, que por sinal é caríssimo, mas enfim, não é todos os dias que há uma retrospectiva desta qualidade de Amadeo de Souza-Cardoso.








