sexta-feira, dezembro 31, 2010
Postwar, de Tony Judt
Da primeira à última página, um livro soberbo. Uma excelente história da Europa desde o fim da 2ª Guerra Mundial até 2004, apresentando uma visão de conjunto (Europa Ocidental e Oriental), descrevendo e analisando os acontecimentos de forma lúcida e sensata, fazendo-nos compreender os mundo em que vivemos e a essência da nossa civilização. Além disso, uma escrita de uma elegância, clareza e espírito que nada deixa a desejar em relação à escrita das biografias de Lytton Strachey ou dos ensaios de Virginia Woolf ou mesmo da história de Gibbon, o que não é pequeno elogio. Uma verdadeira obra-prima. Tenho lido artigos de Judt na New York Review of Books, sempre com prazer, e ler esta sua obra major foi uma delícia.
domingo, dezembro 26, 2010
City Boy, de Edmund White
City Boy é uma memória inteligente e bem escrita de uma certa Nova Iorque nos anos 60 e 70, da vida boémia do período de libertação sexual (liberdade e libertinagem) que se seguiu ao conservadorismo dos anos 50 e precedeu a epidemia de SIDA nos anos 80. White, que viveu intensamente essa época, descreve-a com franqueza e sem moralismos, com uma certa nostalgia mas também com espírito crítico e humor. Evocando os hábitos e aventuras sexuais a par do seu desenvolvimento como escritor e dos seus contactos com o mundo artístico e literário do tempo, o livro está recheado de pequenos retratos de pessoas conhecidas (como Susan Sontag, Robert Mapplethorpe, James Merrill, Jasper Johns, Peggy Gugenheim) e muitas outras menos conhecidas, cujo conjunto reconstitui um ambiente de forma extremamente vívida, o que é o que torna mais interessante a leitura de memórias. Li pouco de Edmund White (gostei muito de um livro de contos, Esfolado Vivo, e pouco do seu famoso A Boy's Own Story), mas este livro deixou-me mais interessado em ler mais alguma coisa dele. E também tenho vontade de ler a memória de Patti Smith publicada este ano.
O Idiota, de Fiódor Dostoievski
É sempre um imenso prazer ler Dostoievski, e O Idiota é um dos seus grandes livros - e não só no tamanho. Tratando de muitos dos temas habituais no autor - o conflito entre o bem e o mal, a política e a religião, a hipocrisia e a franqueza, a procura da "verdadeira alma russa", os impulsos inconscientes -, o prazer da leitura deriva sobretudo da força da escrita. As personagens fortes, atormentadas e contraditórias, as cenas exaltadas e tempestuosas, os episódios humorísticos, as esplêndidas descrições das interrogações das personagens, mesmo as descrições das crises de epilepsia de Michkin. Não admira a enorme influência que teve sobre os escritores das primeiras décadas do século XX. Tenho estado a reler os seus livros, e estou ansioso por chegar a Os Possessos, de que tanto gostei há muitos anos, foi o livro que me fez apaixonar pela sua escrita.
quarta-feira, dezembro 22, 2010
A History of Reading, de Alberto Manguel
Um livro muito interessante e agradável, que me ofereceram nos meus anos. Um bom título alternativo seria The Joys of Reading, pois é sobretudo disso que trata. O autor é evidentemente um leitor apaixonado, e analisa o modo de ler e a influência da leitura através dos tempos, sem uma ordem cronológica estrita, citando múltiplos autores de várias culturas, abordando temas como a importância da leitura no desenvolvimento e libertação do espírito, a importância das traduções, as literaturas "de género", a leitura como instrumento de aprendizagem ou de puro prazer. Esse prazer da leitura é particularmente bem expresso nesta passagem:
We read to find the end, for the story's sake. We read not to reach it, for the sake of the reading itself. We read searchingly, like trackers, oblivious of our surroundings. We read distractedly, skipping pages. We read contemptuously, admiringly, negligently, angrily, passionately, enviously, longingly. We read in gusts of sudden pleasure, without knowing what brought the pleasure along. "What in the world is this emotion?" asks Rebecca West after reading King Lear. "What is the bearing of supremely great works of art on my life which makes me feel so glad?" We don't know: we read ignorantly. We read in slow, long motions, as if drifting in space, weightless. We read full of prejudice, malignantly. We read generously, making excuses for the text, filling gaps, mending faults. And sometimes, when the stars are kind, we read with an intake of breath, with a shudder, as if someone or something had "walked over our grave", as if a memory had suddenly been rescued from a place deep within us - the recognition of something we never knew was there, or of something we vaguely felt as a flicker or a shadow, whose ghostly form rises and passes back into us before we can see what it is, leaving us older and wiser.
Como leitor apaixonado que também sempre fui (há quem me chame "papa-livros"...) sinto-me imensamente identificado com isto.
E não consigo deixar de transcrever uma citação de Virginia Woolf, que já lera no texto original (um ensaio em The Common Reader), e que já então me deliciara:
I have sometimes dreamt that when the Day of Judgement dawns and the great conquerors and lawyers and statesmen come to receive their rewards - their crowns, their laurels, their names carved indelibly upon imperishable marble - the Almighty will turn to Peter and will say, not without a certain envy when He sees us coming with our books under our arms, 'Look, they need no reward. We have nothing to give them. They have loved reading'.
We read to find the end, for the story's sake. We read not to reach it, for the sake of the reading itself. We read searchingly, like trackers, oblivious of our surroundings. We read distractedly, skipping pages. We read contemptuously, admiringly, negligently, angrily, passionately, enviously, longingly. We read in gusts of sudden pleasure, without knowing what brought the pleasure along. "What in the world is this emotion?" asks Rebecca West after reading King Lear. "What is the bearing of supremely great works of art on my life which makes me feel so glad?" We don't know: we read ignorantly. We read in slow, long motions, as if drifting in space, weightless. We read full of prejudice, malignantly. We read generously, making excuses for the text, filling gaps, mending faults. And sometimes, when the stars are kind, we read with an intake of breath, with a shudder, as if someone or something had "walked over our grave", as if a memory had suddenly been rescued from a place deep within us - the recognition of something we never knew was there, or of something we vaguely felt as a flicker or a shadow, whose ghostly form rises and passes back into us before we can see what it is, leaving us older and wiser.
Como leitor apaixonado que também sempre fui (há quem me chame "papa-livros"...) sinto-me imensamente identificado com isto.
E não consigo deixar de transcrever uma citação de Virginia Woolf, que já lera no texto original (um ensaio em The Common Reader), e que já então me deliciara:
I have sometimes dreamt that when the Day of Judgement dawns and the great conquerors and lawyers and statesmen come to receive their rewards - their crowns, their laurels, their names carved indelibly upon imperishable marble - the Almighty will turn to Peter and will say, not without a certain envy when He sees us coming with our books under our arms, 'Look, they need no reward. We have nothing to give them. They have loved reading'.
domingo, dezembro 12, 2010
Fim-de-semana em Amesterdão
Aproveitei uma folga de banco para uma curta viagem a Amesterdão, que ainda não conhecia. Soube-me muito bem - é uma cidade muito agradável, bonita e com um ambiente descontraído, muito turística e cosmopolita.
O tempo estava muito frio, o que foi bom, já que em vez de chuva tive neve em abundância, e no último dia a temperatura subiu, permitindo ver a cidade numa luz mais clara e derretendo a neve - o que tornou andar pelas ruas escorregadias algo perigoso, mas consegui não cair nunca (não admira que usassem tanto tamancos!).
O centro da cidade é relativamente pequeno, pelo que pude andar sempre a pé, que é a minha forma preferida de conhecer uma cidade. A neve obrigou-me a comprar um boné e um chapéu-de-chuva, e a entrar em lojas e cafés de 10 em 10 minutos, mas valeu a pena pela beleza tão diferente do que alguma vez vemos em Lisboa. E há imensos cafés muito simpáticos, onde nos podemos recompor com capuccinos ou vinho aquecido...
Gostei particularmente da arquitectura tradicional, as fachadas ao longo dos canais, todas parecidas mas subtilmente diferentes, e algumas bizarramente tortas, com um aspecto quase saído do filme Dr. Caligari.
Apesar da neve, a cidade estava bastante animada e cheia de turistas - e felizmente com poucas bicicletas a circular. O tão famoso Red Light District atrai os previsíveis turistas barulhentos, e as raparigas das montras eram bonitas, mas o tipo de exposição é degradante - não é seguramente uma característica de Amesterdão que me atraia.
Last but not least, gostei imenso do Museu Van Gogh e do Rijksmuseum (este reduzido às obras principais devido a obras), e tive muita pena de não poder ver o Stedelijk, cuja colecção está fechada também por obras - aliás, havia imensas obras por todo o lado.
Brasileiras confusas
Outro dia, em conversa com um amigo a propósito de indecisões, recordámos uma personagem da telenovela O Casarão, aliás a melhor que me lembro de ter visto; Lina, interpretada por Renata Sorrah, que era uma mulher "moderna" e que passava grande parte do tempo dizendo "estou tão confusa...".
Por associação de ideias, lembrei-me de outras manifestações de confusão de mulheres brasileiras, e achei que é uma injustiça a arte poética dessa grande actriz que era (é?, nunca mais ouvi falar dela) Bruna Lombardi, pelo que aqui publico esta pérola literária da sua autoria:
Eu não sabia o que fazer, e abri a blusa.
Mais tarde eu ia dizer: foi sem pensar.
Ele me achou desnorteada, confusa,
Como acharia qualquer mulher que abre a blusa
E faz tudo que eu fiz só pra agradar.
Minha cabeca não era mesmo muito certa.
Mulher esperta eu nunca fui, mas deveria
Saber me colocar no meu lugar.
Não adiantava nada, eu era assim desatinada,
O tipo de mulher que faz as coisas sem pensar...
Você agora, me ouvindo contar essas histórias,
Talvez me ache também um pouco confusa.
E eu, que faco tudo pra agradar,
Já sem saber o que fazer, abro minha blusa,
Como faria qualquer mulher confusa em meu lugar!
Mas a confusão feminina brasileira vem de longe, como o prova esta outra pequena jóia poética de Cecília Meireles (que pode assim ser considerada uma precursora da bela Bruna), que recordo dos livros de Português dos tempos de escola:
Ou se tem chuva e não se tem sol
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo!