domingo, maio 24, 2009

A empregada russa


Quando era pequeno, tinha sempr uma empregada interna, era habitual na altura, mesmo em famílias da classe média como a minha. Tivemos muitas, devido ao feitio pouco acomodatício da minha mãe, até pouco antes do 25 d Abril; desde então passámos a ter "mulheres-a-dias", muitas também, e a ideia de ter uma empregada a viver em casa tornou-se remota, uma espécie de resquício de épocas passadas. Quando tive a minha própria casa, quando o orçamento o permitiu, também arranjei uma mulher-a-dias, muito fraca aliás, mas a inércia de procurar outra e uma certa timidez em despedi-la fez-me suportá-la durante longos anos, até que a entropia crescente em minha casa, potenciada pela família aumentada e um cão com tendências de vândalo, me forçou a dar o grande passo - despedi a empregada incometente e, seduzido por histórias ouvidas a colegas de maravilhosas empregadas internas imigrantes de Leste, decidi contratar uma.

Comecei por perguntar a alguns conhecidos e vizinhos com empregadas da Europa Oriental se elas recomendavam alguém, sem resultado. Depois, através de uma colega de trabalho, tive conhecimento de uma organização jesuíta de apoio a refugiados que actuava como uma espécie de agênia de emprego para imigrantes, e contatei-os. Depois de duas africanas pouco prometedoras, entrevistei uma candidata russa que me pareceu adequada - de meia idade, o que era uma vantagem, pois sria mais facilmente respeitada pelos meus turbulentos filhos, em Prtugal há tempo suficiente para falar a língua de forma razoável, e que me pareceu sensata, prática e reservada qb. Chegámos facilmente a acordo sobre o ordenado e outros pormenores práticos, e foi com alguma apreensão que a recebi em casa como habitante permanente.

Raramente devo ter tomado decisão mais acertada. Gosto imenso da minha empregada russa, omo os meus amigos me têm dito, "foi um achado". Rapidamente tomou nas mãos as rédeas do governo da casa, com firmeza e espírito prático, elaborou listas do que precisava e que tenazmente me levou a comprar - nomeadamente a famosa máquina Bimby, que eu sempre soberanamente desdenhara ("Mas em Junio em quero a Bimby"). Algo ígida e reservada a princípio, foi-se rvelando uma mulher afectuosa e debom coração, afeiçoando-se rapidamente às crianças, e pouco depois até ao cão, que inicialmente fora motivo para quase recusar o emprego. Intuitiva e inteligente, debita máximas e conselhos na sua pronúncia russa e português algo macarrónico sobre os mais variados assuntos - "Abdallah precisa ver mundo! Assim vai perceber que tem de estudar para ganhar dinheiro!", "Bimby muito boa; poupa tempo e dinheiro - cozinha do século XXI.", "Russos nada poupados... Gostam muito de beber, todos gordos!", "Amsterdão muito barulho, um horror, vê-se em 20 minutos!", e muitas outras. Tem características divertidas, como uma certa tendência para o exagero ("Cão hoje fez 30 cócós!") e uma paixão por futebol e por compras de "coisas doméstecas"; a sua cozinha é algo pesada e altamente calórica (não admira que "russos sejam todos gorods"...), mas tem-nos feito provar saborosas sopas, almôndegas, bolos e saladas.

Estou mesmo satisfeitíssimo com a minha Avdótia Romanovna. A sua figura maciça e as uas feiçõs nitidamente eslavas ("sou russa russa", respondeu-me quando lhe perguntei de onde vinha na Europa de Leste) lembram-me uma simpática e reconfortante matrioshka, uma mãezinha, como os russos dos romances chamam às mulheres de certa idade. Gosto de a ouvir contar episódios da sua vida na Rússia soviética, e do período das "perturbações", como ela lhe chama - a omnipresença do mercado negro, as viagens a Moscovo para comprar botas, as festas do 1º de Maio e do dia da Revolução de Outubro... - e tenho aprendido muito. Até já tenho vontade de seguir o seu conselho tantas vezes repetido: "Você tem de ir à Rússia, levar Abdallah!".

Sim, estou mesmo contente com a minha Tatiana Alexandrovna, que sinto como já fazendo parte da família, e que completou recentemente um ano de casa.

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