terça-feira, junho 17, 2008
Felicidade e relacionamentos
Em The Happiness Hypothesis, que li recentemente, o autor fala a certa altura de dois tipos de amor: passionate love e companionate love, que traduzirei por amor-paixão e amor-companheirismo. Estas noções não são novas – lembro-me aliás de um livro que esteve extremamente na moda nos anos 80, Enamoramento e Amor, de Francesco Alberoni, que era todo ele dedicado a esse assunto – mas gostei da forma como Jonathan Haidt as trata, e o tema interessa-me porque tenho pensado nele frequentemente. O autor define da seguinte forma estes dois tipos de amor: o amor-paixão é “um estado de emoção apaixonada, em que coexistem tumultuosamente sentimentos ternos e sensuais, a ansiedade e o alívio, o ciúme e o altruísmo”; o amor-companherirismo “cresce lentamente ao longo dos anos, à medida que os amantes desenvolvem a sua proximidade e solidariedade e passam a depender, a cuidar e a confiar um no outro". Mais à frente diz: “Se a metáfora para o amor-paixão é o fogo, a metáfora para o amor-companheirismo é uma trepadeira, cujos ramos crescem e se entrelaçam, aproximando e ligando progressivamente as duas pessoas" (traduções minhas). Gostei particularmente, porque concordo inteiramente com ela, da ideia do autor de que os dois tipos de amor são independentes, de que o amor-paixão não conduz necessariamente ao outro, e que é este último o que perdura e que produz uma felicidade mais completa e duradoura.
Tive a sorte de viver um amor-paixão intenso e completo, e que conduziu a um amor-companheirismo que, apesar de muitos acidentes e tribulações pelo caminho, se consolidou e fortaleceu ao longo de anos, como na imagem dos ramos de trepadeira que se foram entrelaçando e misturando de tal forma que a certa altura a vida parecia impossível sem essa ligação, sem esse complemento. Os acontecimentos mostraram-me que não foi impossível, mas é certo que com os seus ramos muitos dos meus também foram arrancados e muitos pedaços dos seus ficaram intrincada e definitivamente inseridos nos meus.
Com o passar do tempo, aconteceram entusiasmos, algumas breves paixões, mas nada que se aproximasse nem de longe do que já vivera e como tal sempre me sabendo a muito pouco; aceitei que o grau maior ou menor de felicidade na minha vida não incluiria uma relação a dois, o que foi de certa forma um alívio. Até que a dada altura, constatei que sem me aperceber me envolvera numa relação que, sem nunca ter passado por uma fase de amor-paixão, evoluíra imperceptivelmente para um companheirismo, uma amizade, precisamente do tipo que “cresce lentamente ao longo dos anos, à medida que os amigos desenvolvem a sua proximidade e solidariedade e passam a depender, a cuidar e a confiar um no outro”. Substituí a palavra amantes pela palavra amigos, e a definição aplica-se na perfeição. Não será então o amor-companheirismo um outro nome para a amizade que Montaigne considerava a relação mais nobre entre dois seres humanos? Não será portanto a amizade-companheirismo o que mantém unidas e entrelaçadas, quais trepadeiras frondosas, duas pessoas ao longo da vida, seja casadas ou depois de terem vivido o amor-paixão (o enamoramento de Alberoni), seja quaisquer outras que tenham evoluído directamente para esse tipo de relação, sem passar por paixões tumultuosas, sendo do mesmo ou de diferente sexo? A nossa sociedade actual está tão excessivamente estruturada à volta da procriação, do sexo, da ideia de amor romântico e sexual, que as pessoas se habituaram a viver centradas no casal, e a relegar a amizade para relações entre adolescentes (no pressuposto de algo transitório até ao acasalamento) e na vida adulta para conversas no trabalho ou no café, enquanto que o principal, a verdadeira vida, decorre no lar na vida a dois. Daí derivam tantos preconceitos e clichés, incluindo a estranheza com que se encara quem decide não formar família e a suspeição que desperta uma amizade mais chegada.
É uma pena, porque estou certo de que esses preconceitos, essa forma limitada de ver as coisas, impedem o desenvolvimento e o crescimento de muitas trepadeiras, e como tal de muita felicidade. E sei que pelo menos no meu caso grande parte da felicidade que tenho experimentado se deve a ter deixado crescer e entrelaçar novas ramadas, numa amizade (ou amor-companheirismo, porque não?) cujo valor nunca celebrarei o suficiente.
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