domingo, outubro 31, 2010
The Turks Today, de Andrew Mango
Um livro muito bom, de leitura fácil e agradável, e que ajuda muito a compreender o estado actual da Turquia. O autor defende a integração europeia da Turquia, e fá-lo extremamente bem - eu, que sempre fui contra a entrada da Turquia na UE, sinto-me muito menos seguro dessa opinião no final da leitura. Sem dúvida, o conhecimento e a abertura de espírito fazem muito mais pelo progresso e a paz do que os preconceitos e a ignorância... Sobre o revivalismo islâmico, que é o factor que mais nos assusta na Turquia actual, o autor apresenta logo de início uma visão que pretende ser tranquilizadoramente desdramatizante: "The «Sunni renaissance» accompanies and is partly a reaction to the continuing organic secularization of Turkish society, just as Victorian piety developed in counterpoint to the secularization of British society. As in Britain after the industrial revolution, the revival of piety is easing the pain and discomforts of Turkey's modernization. The phenomenon is, arguably, not a sign of a coming clash of civilizations, but a commmon feature in the development of our universal civilization." Será? Há outros factores em jogo, como a situação nos outros países do Médio Oriente e os problemas de (não) integração das minorias islâmicas na Europa (geralmente oriundas de meios rurais, e portanto representativas dos sectores mais atrasados dos seus países). Depois de andar pelos bairros de Besiktas e mesmo de Üsküdar em Istambul, é difícil não ter uma visão mais optimista do futuro civilizacional da Turquia. Enfim, veremos. Mas concordo que o interesse da Europa está mais em aproximar-se da Turquia do que em repeli-la.
domingo, outubro 17, 2010
5 Dias em Istambul
Istambul revelou-se uma agradável surpresa - apesar da muita vontade de visitar os vestígios da antiga Constantinopla e de conhecer os monumentos da capital otomana, a ideia de multidões, trânsito caótico, revivalismo islâmico e vendedores insistentes, desanimava-me bastante.
Chegado à cidade com estas reservas, rapidamente as perdi. No trajecto do aeroporto até ao hotel em Sultanahmet, encontrei-me numa paisagem urbana praticamente igual à dos arredores de Lisboa, e a visão do Mar de Mármara com numerosos barcos era-me completamente familiar. Ficámos num hotel muito central em Sultanahmet, no coração da velha Constantinopla. É a zona mais bonita da cidade, repleta de mesquitas, velhas casas, cafés e restaurantes, lojas e turistas. Depois de um passeio ao acaso pelas ruas para ter uma ideia do ambiente - semelhante ao de qualquer grande cidade turística, com algumas características particulares à cultura local - e de experimentar um sumo de romã dos vendedores de rua e o primeiro chá de maçã (elma çay, delicioso) num dos muitos cafés de mesinhas baixas e almofadas turcas, começámos por visitar um dos monumentos que mais vontade tinha de conhecer: Santa Sofia.
Visitar Santa Sofia, para um amante de História como eu, depois de ler Gibbon, é um sonho tornado realidade, e não me decepcionou minimamente. Não só a estrutura arquitectónica é bela e impressionante - não por acaso serviu de modelo a todas as grandes mesquitas da cidade - como a vastidão do interior é impressionante ainda hoje, 15 séculos depois da sua construção.
Depois de Santa Sofia, visitámos a Basílica Cisterna, uma vasta floresta de colunas romanas com um ambiente mágico. Seguiu-se o palácio Topkapi, onde se entra depois de passar a Sublime Porta (mais uma vez, quantos ecos históricos!). O tão celebrado tesouro, com as suas sumptuosas peças de joalharia e os montes de esmeraldas do tamanho de ameixas impressionou-me menos do que a graciosidade e conforto dos pavilhões e das salas do Harém, com os seus painéis de azulejos e divãs forrados de tapetes turcos, e as primeiras vistas sobre o Bósforo, o Corno de Ouro e o bairro de Beyoglu.
A Mesquita Azul foi a primeira em que entrei. O exterior é belíssimo, com as suas cúpulas sobrepostas, o interior é grandioso e magnificamente decorado com azulejos; a vastidão do espaço disponível para os homens contrasta com a espécie de armário ao longo da parede fechado por painéis de madeira perfurada destinado às mulheres - testemunho de como o lugar das mulheres na religião islâmica se mantém subalterno e pouco dignificado.
O colorido e animado cais de Eminönü, junto à ponte de Galata que atravessa o Corno de Ouro ligando Sultanahmet a Beyoglu (a antiga Pera), é de onde saem os numerosos ferries, invejáveis para quem, como eu, está habituado aos dilapidados barcos da Transtejo. Vendedores de castanhas, de maçarocas de milho, de sanduíches de peixe, homens apregoando os cruzeiros no Bósforo, multidões de citadinos e turistas. Ao lado, a Mesquita Nova (fim do século XVI), e o espectacular Bazar das Especiarias, com a sua abundância de frutos secos, doces, cafés, lâmpadas, almofadas e, claro, especiarias, e a agradável surpresa de, ao contrário das melgas marroquinas, os vendedores turcos nada insistentes, simpáticos e com sentido de humor. Uma verdadeira orgia de cores e cheiros.
Percorremos a Istiqlal Caddesi, uma espécie de Oxford Street em Beyoglu, entrando nas livrarias (onde comprei alguns livros de autores turcos aconselhados pelo empregado) e parando para mais um çay num café onde um homem preparava o café à moda turca, até à Praça Taksim, uma espécie de Martim Moniz hipertrofiado. Uma viagem de metro levou-nos ao distrito financeiro de Levant, uma zona ocidentalizada e incaracterística de arranha-céus e um grande centro comercial moderno onde se entra passando por um detector de metais semelhante aos dos aeroportos - a polícia turca leva a segurança muito a sério, provavelmente em parte devido aos países vizinhos, que incluem o Irão, o Iraque, a Síria, a Geórgia e a Arménia.
Subimos o Corno de Ouro até Eyüp, uma zona sossegada de casas tradicionais e cemitérios à volta de uma mesquita dedicada ao túmulo do porta-estandarte de Maomé. As orações de sexta-feira atraíam multidões de muçulmanos, com tapetes estendidos no pátio da mesquita ampliando o recinto religioso, as mulheres todas de lenço islâmico e muitas de niqab. Um teleférico levou-nos até ao cimo da colina, onde fica o café Pierre Loti, com um interior de divãs e mesinhas baixas e um terraço com uma vista magnífica sobre o Corno de Ouro.
a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}"
Fener, o antigo bairro dos cristãos ortodoxos e
judeus, é uma zona sossegada e pobre, com um aspecto quase rural, com galinhas, cordas de roupa estendida, velhas casas de madeira belíssimas a cair de abandono, crianças empreendedoras que nos conduziram à igreja bizantina de Pamakaristos em troca de algumas liras - bem o mereceram, já que eram as pessoas mais bem informadas e com um inglês mais perceptível que ali encontrámos. O bairro de Fatih, onde se concentra a população mais devota e conservadora da cidade, é um pouco opressivo - todas as mulheres veladas, quase todas de niqab, os homens de turbantes, as lojas vendendo os negros chadors e niqabs ou livros de orações e propaganda islâmica.
Depois de Fatih, novamente a animação cosmopolita da zona do Grande Bazar. A mesquita Suleymania estava fechada para obras, só pudemos visitar os magníficos túmulos de Suleimão o Magnífico e da sua consorte Roxelana, uma espécie de Lívia otomana. O labirinto do Grande Bazar, com os seus milhares de lojas, é menos atarente que o Bazar das Especiarias, mas vale a pena visitar, nem que seja pelas numerosas lojas de tapetes.
A subida do Bósforo decepcionou-me; é verdade que há belas casa e palácios, e a Fortaleza da Europa, um castelo do século XV construído antes da conquista de Constantinopla, é muito bonito. Subimos até Kanlica, a terra dos famosos iogurtes, mas gostei muito mais de Besiktas, uma zona animada e completamente ocidentalizada, com miúdos a andar de skate e cafés cheios de jovens de ambos os sexos a jogar gamão e a fumar narguilé, um completo contraste com as mulheres de negro de Fatih. Üsküdar, no lado asiático, é uma zona bastante incaracterística, pouco interessante a não ser pela mesquita (mais uma projectada pelo infatigável Sinan, arquitecto do século XVI responsável por montes de mesquitas em Istambul) e sobretudo pelas vistas sobre Sultanahamet, com o perfil de cúpulas e minaretes que admirámos ao pôr-do-sol.
Cidade de grandes contrastes - as raparigas fumando narguilé em Besiktas e as mulheres de negro em Fatih -, da beleza arquitectónica das mesquitas com as suas cúpulas e minaretes e das casas de madeira mas também de urbanizações tipo J.Pimenta, do canto dos muezzins saindo dos megafones dos minaretes e da música kitsch do pop turco aos berros das lojas de discos, suficientemente ocidentalizada para ser familiar e segura e com sinais de islamismo a cada esquina.
E gatos, gatos por todo o lado, nos pátios das mesquitas, nos cemitérios, nos cafés, brincando com as mercadorias das lojas, instalados nos passeios com a segurança de quem é bem tratado e respeitado por toda a gente.
Fiquei com vontade de voltar, e de conhecer mais da Turquia. Viajar é realmente um dos maiores prazeres da vida.
Chegado à cidade com estas reservas, rapidamente as perdi. No trajecto do aeroporto até ao hotel em Sultanahmet, encontrei-me numa paisagem urbana praticamente igual à dos arredores de Lisboa, e a visão do Mar de Mármara com numerosos barcos era-me completamente familiar. Ficámos num hotel muito central em Sultanahmet, no coração da velha Constantinopla. É a zona mais bonita da cidade, repleta de mesquitas, velhas casas, cafés e restaurantes, lojas e turistas. Depois de um passeio ao acaso pelas ruas para ter uma ideia do ambiente - semelhante ao de qualquer grande cidade turística, com algumas características particulares à cultura local - e de experimentar um sumo de romã dos vendedores de rua e o primeiro chá de maçã (elma çay, delicioso) num dos muitos cafés de mesinhas baixas e almofadas turcas, começámos por visitar um dos monumentos que mais vontade tinha de conhecer: Santa Sofia.
Visitar Santa Sofia, para um amante de História como eu, depois de ler Gibbon, é um sonho tornado realidade, e não me decepcionou minimamente. Não só a estrutura arquitectónica é bela e impressionante - não por acaso serviu de modelo a todas as grandes mesquitas da cidade - como a vastidão do interior é impressionante ainda hoje, 15 séculos depois da sua construção.
Depois de Santa Sofia, visitámos a Basílica Cisterna, uma vasta floresta de colunas romanas com um ambiente mágico. Seguiu-se o palácio Topkapi, onde se entra depois de passar a Sublime Porta (mais uma vez, quantos ecos históricos!). O tão celebrado tesouro, com as suas sumptuosas peças de joalharia e os montes de esmeraldas do tamanho de ameixas impressionou-me menos do que a graciosidade e conforto dos pavilhões e das salas do Harém, com os seus painéis de azulejos e divãs forrados de tapetes turcos, e as primeiras vistas sobre o Bósforo, o Corno de Ouro e o bairro de Beyoglu.
A Mesquita Azul foi a primeira em que entrei. O exterior é belíssimo, com as suas cúpulas sobrepostas, o interior é grandioso e magnificamente decorado com azulejos; a vastidão do espaço disponível para os homens contrasta com a espécie de armário ao longo da parede fechado por painéis de madeira perfurada destinado às mulheres - testemunho de como o lugar das mulheres na religião islâmica se mantém subalterno e pouco dignificado.
O colorido e animado cais de Eminönü, junto à ponte de Galata que atravessa o Corno de Ouro ligando Sultanahmet a Beyoglu (a antiga Pera), é de onde saem os numerosos ferries, invejáveis para quem, como eu, está habituado aos dilapidados barcos da Transtejo. Vendedores de castanhas, de maçarocas de milho, de sanduíches de peixe, homens apregoando os cruzeiros no Bósforo, multidões de citadinos e turistas. Ao lado, a Mesquita Nova (fim do século XVI), e o espectacular Bazar das Especiarias, com a sua abundância de frutos secos, doces, cafés, lâmpadas, almofadas e, claro, especiarias, e a agradável surpresa de, ao contrário das melgas marroquinas, os vendedores turcos nada insistentes, simpáticos e com sentido de humor. Uma verdadeira orgia de cores e cheiros.
Percorremos a Istiqlal Caddesi, uma espécie de Oxford Street em Beyoglu, entrando nas livrarias (onde comprei alguns livros de autores turcos aconselhados pelo empregado) e parando para mais um çay num café onde um homem preparava o café à moda turca, até à Praça Taksim, uma espécie de Martim Moniz hipertrofiado. Uma viagem de metro levou-nos ao distrito financeiro de Levant, uma zona ocidentalizada e incaracterística de arranha-céus e um grande centro comercial moderno onde se entra passando por um detector de metais semelhante aos dos aeroportos - a polícia turca leva a segurança muito a sério, provavelmente em parte devido aos países vizinhos, que incluem o Irão, o Iraque, a Síria, a Geórgia e a Arménia.
Subimos o Corno de Ouro até Eyüp, uma zona sossegada de casas tradicionais e cemitérios à volta de uma mesquita dedicada ao túmulo do porta-estandarte de Maomé. As orações de sexta-feira atraíam multidões de muçulmanos, com tapetes estendidos no pátio da mesquita ampliando o recinto religioso, as mulheres todas de lenço islâmico e muitas de niqab. Um teleférico levou-nos até ao cimo da colina, onde fica o café Pierre Loti, com um interior de divãs e mesinhas baixas e um terraço com uma vista magnífica sobre o Corno de Ouro.
a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}"
Fener, o antigo bairro dos cristãos ortodoxos e
judeus, é uma zona sossegada e pobre, com um aspecto quase rural, com galinhas, cordas de roupa estendida, velhas casas de madeira belíssimas a cair de abandono, crianças empreendedoras que nos conduziram à igreja bizantina de Pamakaristos em troca de algumas liras - bem o mereceram, já que eram as pessoas mais bem informadas e com um inglês mais perceptível que ali encontrámos. O bairro de Fatih, onde se concentra a população mais devota e conservadora da cidade, é um pouco opressivo - todas as mulheres veladas, quase todas de niqab, os homens de turbantes, as lojas vendendo os negros chadors e niqabs ou livros de orações e propaganda islâmica.
Depois de Fatih, novamente a animação cosmopolita da zona do Grande Bazar. A mesquita Suleymania estava fechada para obras, só pudemos visitar os magníficos túmulos de Suleimão o Magnífico e da sua consorte Roxelana, uma espécie de Lívia otomana. O labirinto do Grande Bazar, com os seus milhares de lojas, é menos atarente que o Bazar das Especiarias, mas vale a pena visitar, nem que seja pelas numerosas lojas de tapetes.
A subida do Bósforo decepcionou-me; é verdade que há belas casa e palácios, e a Fortaleza da Europa, um castelo do século XV construído antes da conquista de Constantinopla, é muito bonito. Subimos até Kanlica, a terra dos famosos iogurtes, mas gostei muito mais de Besiktas, uma zona animada e completamente ocidentalizada, com miúdos a andar de skate e cafés cheios de jovens de ambos os sexos a jogar gamão e a fumar narguilé, um completo contraste com as mulheres de negro de Fatih. Üsküdar, no lado asiático, é uma zona bastante incaracterística, pouco interessante a não ser pela mesquita (mais uma projectada pelo infatigável Sinan, arquitecto do século XVI responsável por montes de mesquitas em Istambul) e sobretudo pelas vistas sobre Sultanahamet, com o perfil de cúpulas e minaretes que admirámos ao pôr-do-sol.
Cidade de grandes contrastes - as raparigas fumando narguilé em Besiktas e as mulheres de negro em Fatih -, da beleza arquitectónica das mesquitas com as suas cúpulas e minaretes e das casas de madeira mas também de urbanizações tipo J.Pimenta, do canto dos muezzins saindo dos megafones dos minaretes e da música kitsch do pop turco aos berros das lojas de discos, suficientemente ocidentalizada para ser familiar e segura e com sinais de islamismo a cada esquina.
E gatos, gatos por todo o lado, nos pátios das mesquitas, nos cemitérios, nos cafés, brincando com as mercadorias das lojas, instalados nos passeios com a segurança de quem é bem tratado e respeitado por toda a gente.
Fiquei com vontade de voltar, e de conhecer mais da Turquia. Viajar é realmente um dos maiores prazeres da vida.
Life With a View - A Turkish Quest, de Toni Sepeda
Um dos prazeres que tiro das minhas viagens é comprar livros nos sítios que visito e depois lê-los - ficção por escritores do país ou livros sobre o mesmo. Istambul não foi excepção, comprei vários livros nas boas livrarias da Istiqlal Caddesi (várias com excelentes selecções em inglês), e o primeiro que li foi Life With a View, de Toni Sepeda. É o relato das peripécias de um casal americano que constrói uma casa de férias na costa do Mar Negro, perto de Istambul. É um livro engraçado, que me lembrou um outro semelhante sobre Portugal - Uma Casa em Portugal, sobre a remodelação de uma casa numa aldeia perto de Sintra por um casal de americanos - algo paternalista, mas ressumando um grande afecto pelo país de adopção, neste caso a Turquia, cuja sociedade e valores ajuda a compreender pelas experiências da narradora. Esta revela uma série de características muito típicas dos americanos, temperada por uma cultura e experiência de expatriação na Europa (vive há muitos anos em Veneza), que se traduz na atitude paternalista que referi (algo no género mas-que-queridos-que-são-estes-turcos-e-como-aprendemos-com-os-seus-costumes-mas-continuamos-a-ser-mais-sensatos-e-evoluídos). Penso que a autora discordaria provavelmente desta minha crítica, mas a analogia com o livro sobre Portugal facilita colocarmo-nos na perspectiva de um turco a ler este livro. De qualquer forma, é um livro agradável de ler, por vezes um pouco repetitivo e demasiado preenchido por alusões ao refinamento cultural da autora, que se torna aqui e ali um tanto snob, mas globalmente simpático e informativo sobre a Turquia.
terça-feira, outubro 12, 2010
Intenção de Greve
Nunca aderi a nenhuma das muitas greves de médicos que tiveram lugar ao longo dos anos desde que comecei a trabalhar (isoladas ou integradas em greves de outros trabalhadores, como funcionários públicos). Não porque ache que os médicos não têm o direito de fazer greve, mas porque, dadas as características particulares do nosso trabalho – nomeadamente a forma como afecta o bem estar imediato das pessoas e o impacto emocional, e os custos humanos para os doentes e para nós de o adiar – sempre pensei que deve ser um recurso a utilizar o menos possível. E até agora, sempre achei os motivos invocados para as diversas greves insuficientes para as justificar.
Desta vez, no entanto, tenciono aderir à greve geral de 24 de Novembro. Por dois motivos:
Primeiro, porque novamente vão ser preferencialmente afectados os funcionários públicos, passando mais uma vez a mensagem de que são uns parasitas e ineficazes, quando o motivo porque se vai buscar aí o dinheiro e não aos bancos e à evasão fiscal é por ser muito mais fácil. No caso particular dos funcionários públicos médicos como eu, estas medidas vêm reforçar a já caricata situação em que nos encontramos: há vários anos que os quadros estão fechados, mas como continuam a ser precisos médicos para o SNS funcionar, estes vão sendo admitidos com contratos individuais de trabalho. Tecnicamente, não pertencem à Função Pública, apesar de trabalharem para o Estado. Na prática, são admitidos a ganhar mais do que as pessoas do quadro, que são mais antigas na instituição e geralmente seus superiores hierárquicos, e o ordenado pode variar significativamente entre pessoas com a mesma diferenciação e qualidade técnica, já que é ditado pela necessidade da instituição empregadora no momento do contrato e pela habilidade negocial do contratado. Quando os cortes dos vencimentos tiverem lugar, estes “não funcionários públicos” não serão afectados, o que ainda vai aumentar mais a desvantagem salarial dos médicos funcionários públicos. A consequência será provavelmente nova debandada dos médicos mais diferenciados e qualificados do SNS, que serão substituídos por novos “não funcionários públicos” de qualidade inferior e que irão ganhar mais do que os que saíram.
Segundo, porque estas medidas, mais uma vez, não vão resultar, e estou saturado dos dogmas que os governos ocidentais nos últimos anos nos têm incessantemente pregado, aplicando-os em nome “dos mercados”, essa nova religião, provocando uma espiral descendente que só favorece os bancos e os especuladores. Até eu, que percebo muito pouco de Economia, já percebi que estas medidas vão apenas piorar o nosso nível de vida para dentro de um ano “os mercados” novamente dizerem que Portugal apresenta poucas perspectivas de crescimento e tudo se repetir, como está a acontecer em outros países. Por isso acho que temos de nos opor a esta atitude persistente de autismo político, a esta religião saloia que está a destruir activamente o modo de vida que permitiu o período de maior e mais prolongado bem-estar que a Europa conheceu.