sábado, julho 25, 2009

Velhice



“Last scene of all, That ends this strange eventful history, Is second childishness and mere oblivion, Sans teeth, sans eyes, sans taste, sans everything”

William Shakespeare in As You Like It

ntem chguei a casa triste, com aqiele género de aperto no coração de quando algo nos impressiona e deprime e temos consciência de que não podemos fazer nada. O rosto cadavérico e os olhos de uma tristeza resignada da D.Zulmira quando nos apertámos as mãos, ela sentada no carro que a levaria ao hospital, e eu a dizer "até à próxima" com um sorriso que tentava ser encorajador, perseguem-me até agora, e por isso apeteceu-me escrever sobre ela.

Conheço-a há uns 4 anos, e tornou-se minha doente há 3, depois de alguns conflitos entre as filhas e a sua então médica assistente. (Apesar da minha fama de mau feitio, ou talvez por causa disso, recebo muitas vezes doentes que se incompatibilizam com outros médicos.) Preparei-me para uma relação difícil com uma doente opiniosa e filhas intrometidas (habitualmente, nestes casos as famílias são o pior; apesar de geralmente bem intencionadas, as boas intenções e frequentemente os sentimentos de culpa são fatais para a sensatez), mas felizmente tudo correu pelo melhor. A doente era uma professora primária reformada de 82 anos, ainda com uma excelente cabeça, sempre muito aprumada e determinada, que proibiu as filhas de irem à consulta com ela para não estragarem a relação com o novo médico assitente - sábia resolução, que só por si mostrou que tinha muito mais juízo do que elas. Nunca foi uma doente dócil: sempre inquisitiva e determinada, ferozmente independente e lutando contra os inevitáveis efeitos da idade e da doença, nessa altura ainda pouco visíveis. Sempre encorajei a sua independência e curiosidade, embora desde o início previsse que passaria um mau bocado a fazê-la aceitar o declínio que seria inevitável, e esperava secretamente que tivesse a sorte de sofrer algum acidente rapidamente fatal antes de isso acontecer. Lembro-me de conversar com ela durante os tratamentos, de como ela se destacava dos outros pela sua postura sempre educada, muito direita no seu 1.50m de altura e cabelo em carrapito, a ler ou a escrever num caderno onde anotava pensamentos, ideias e projectos. Muito obsessiva, discutia cada comprimido até ficar convencida, altura em que reconhecia a sua utilidade e cumpria escrupulosamente.

Durante cerca de 2 anos, manteve-se muito bem, suportando entretanto com notável força de espírito a doença e morte do marido; as filhas iam aparecendo por vezes, muito mais obsessivas do que a mãe (chegavam a acordá-la às 3 da manhã para lhe dar comprimidos!), mas nunca precisei de me aborrecer com elas. Mas, de há 1 ano para cá, a esperada e temida decadência começou, desencadeada por uma crise de colangite litiásica. O equilíbrio que até aos 84 anos fora tão estável começou a desmoronar-se. Outras doenças intercorrentes, pouco graves em si, foram-se sucedendo, e cada uma era como uma machadada que a deixava mais frágil, mais incapacitada, mais desmemoriada. Angustiava-me vê-la pedir-me para repetir a medicação todas as semanas, porque a esquecia, ver que no caderno passava a escrever apenas sobre as suas queixas físicas e medicamentos, agarrando-se tenazmente à vida e à independência que sentia fugir-lhe de dia para dia. Não podia passar por ela sem que me retivesse pelo menos meia hora com as mesmas queixas, no fundo apelos a que eu fizesse o milagre de a manter como era antes. Cheguei váris vezes a evitá-la, fingindo que não estava lá, em dias em que tinha menos tempo ou paciência, e depois sentia-me terrivelmente desconfortável pela minha cobardia. As filhastambém se tornaram mais insistentes, mas com elas foi fácil lidar: expliquei claramente o que se passava e o que havia a esperar - decadência progressiva até à morte.

E ontem estava pior do que nunca, como murmurou, numa apatia tão pouco característica da sua personalidade, "já estou como um fantasma". Quando me despedi dela, ambos sabíamos que não devemos tornar a ver-nos. Ou, se ainda recuperar desta vez, voltará mais fraca, e será apenas para prolongar esta situação por mais uns dias, umas semanas, eventualmente uns meses, já que apesar de tudo tinha uma constituição robusta e estas pessoas são por vezes de uma resistência espantosa (e só nas novelas é que os médicos sabem o tempo de vida que resta aos doentes com uma exactidão ao dia ou à semana).

Gosto muito da minha profissão, mas há alturas em que pode ser muito deprimente.

2 comentários:

  1. Não conhecia este espacinho que tens tão bem escondido.
    Gostei imenso do que li. E, mais uma vez, ficam bem evidentes os maus bocados por que, pessoas sensíveis que abraçam a tua profissão, devem passar quase diariamente.
    É tudo muito lindo. Mas como é que se domesticam os afectos?

    Obrigada pelo comentário tão querido (deixas-me sempre orgulhosa e também um bocadinho emocionada) que deixaste no meu blogue.

    Um beijo

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  2. É assustador a dependência que a doença, a velhice e o sofrimento podem causar... E muito triste.

    Perder a dignidade também deve ser muito triste. Não sabes como isso me aterroriza :(

    Beijinhos



    E tens razão, donagata, ele é muuuiiito discreto ;)

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