Muito interessantes, estes ensaios de Susan Sontag sobre a doença como metáforas, sobre a forma como as doenças são encaradas e demonizadas. O primeiro, focado na tuberculose e no cancro, é de longe o melhor, o segundo uma extensão ao caso da sida. A autora demonstra como estas doenças, por muito terríveis que possam ser, são apenas isso - doenças. Não são maldições, nem castigos, nem "privilégios" - no sentido de tornarem as pessoas melhores ou " mais interessantes", como se pensava no século XIX em relação à tuberculose e na primeira metade do século XX em relação às doenças mentais. E mostra com lucidez como o impacto devastador que têm sobre a nossa sociedade tem muito mais a ver com a forma como são encaradas e mitificadas do que propriamente com os seus efeitos directos. A comparação da visão da tuberculose no século XIX e com a do cancro no século XX está muito bem apresentada, e o olhar igualmente lúcido sobre a sida, numa altura (1988) em que esta era ainda uma doença intratável (a grande viragem do tratamento anti-retroviral foi em 1996) é elucidativo e de certa forma tranquiilizador - por haver alguém que saiba expor e desmascarar os mitos da doença ( e do medo da doença) tão bem.
Como médico, o assunto interessa-me particularmente, e também me fez relembrar a minha "relação" pessoal com as doenças - como muitas almas livrescas e algo românticas, também eu tinha na juventude uma visão irrealisticamente idealizada das doenças mentais, como algo que tornava as pessoas mais "interessantes" - as neuroses, as psicoses - tomando como exemplo personagens como Sílvia Nogaret de O Príncipe das Trevas de Durrell. Só quando comecei a lidar ao vivo com a doença mental, primeiro nas enfermarias do Hospital Miguel Bomabarda na Faculdade, depois com alguém que me era muito próximo, me apercebi da verdadeira natureza destas doenças - tais como as físicas, doenças, causa de sofrimento terrível, talvez ainda pior porque levando ao desmoronamento da personalidade, da ideia de nós próprios. Como diz a personagem de Settembrini a Hans Castorp, a certa altura de A Montanha Mágica, a doença em nada "enriquece" nem torna "interessante" quem dela sofre. Causam sofrimento, e geralmente provocam uma degradação de quem sofre; não há nada de romântico nas doenças.
Algumas passagens que considero especalmente significativas:
Além do mais, existe uma particular predilecção dos tempos modernos pelas explicações psicológicas da doença, como de tudo o resto. "Psicologizar" dá uma aparência de controlo das experiências e dos acontecimentos (como as doenças graves) sobre os quais as pessoas de facto pouco ou nenhum controlo têm. Tal realidade tem que ter uma explicação. (O seu real significado é; ou é um símbolo de; ou deve ser interpretada como sendo.) [...] Grande parte da popularidade e do poder de persuasão da psicologia vem-lhe do facto de ser um espiritualismo sublimado: um modo secular, ostensivamente científico, de afirmar o primado do "espírito" sobre a matéria.
Nada é mais repressivo do que atribuir um significado a uma doença sendo tal significado invariavelmente moralista.
O meu objectivo era o de aliviar o sofrimento inútil - exactamente como Nietzsche o formulou, numa passagem de Aurora que li recentemente: Reflexões sobre a doença - Tranquilizar a imaginação do enfermo, a fim de que pelo menos não sofra mais com os seus pensamentos sobre a doença do que com a própria doença - eis o que, na minha opinião, já seria alguma coisa! Seria mesmo uma grande coisa!
(A desconfiança em relação à medicina eficaz, científica, por oferecer tratamentos meramente específicos de determinada doença, e muitas vezes tóxicos, é uma suposição errada recorrente entre pessoas que se consideram esclarecidas.) Esta escolha desastrosa coninua a ser feita por pessoas com cancro, uma doença que muitas vezes a cirurgia e os medicamentos podem curar. [...] Mas submeter um corpo emaciado à purificação de uma dieta macrobiótica é tão útil na cura da sida como fazer uma sangria, o tratamento médico "holístico" por excelência na época de Donne.
Um cenário moderno constante: o apocalipse espreita... e nunca acontece. Aparentemente vivemos a um passo de um dos modernos tipos de apocalipse. [...] O apocalipse tornou-se num acontecimento que está e não está a acontecer.
É sempre bom, e instrutivo, lermos as reflexões de pessoas lúcidas e inteligentes.
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