Num número do New England Journal of Medicine deste mês saiu um artigo interessante sobre o problema das objecções morais / religiosas de médicos à realização de procedimentos legais mas moralmente controversos: Religion, Conscience, and Controversial
Clinical Practices, autores Farr A. Curlin, M.D., Ryan E. Lawrence, M.Div., Marshall H. Chin, M.D., M.P.H., and John D. Lantos, M.D. Reproduzo aqui o abstract e dois excertos das conclusões (tradução minha, poderá não ser muito boa, mas este é um blog português...).
Abstract:
Contexto
Existe um aceso debate sobre se os profissionais de saúde podem recusar tratamentos a que são objectores por motivos morais. É importante compreender a opinião dos médicos sobre os seus direitos e deveres éticos quando esses conflitos surgem na prática clínica.
Métodos
Conduzimos um estudo transversal numa amostra aleatorizada, estratificada, de 2000 médicos americanos de todas as especialidades por correio. As principais variáveis foram os julgamentos dos médicos sobre os seus direitos e deveres éticos quando pediam um procedimento medico-legal a que os médicos objectavam por motivos morais ou religiosos. Estes procedimentos incluíam a administração de sedação terminal em doentes moribundos, a realização de aborto para uma falha de contracepção e a prescrição de contraceptivos a adolescentes sem autorização dos pais.
Resultados
Um total de 1144 em 1820 médicos (63%) respondeu ao nosso inquérito. Com base nos nossos resultados, estimamos que a maioria dos médicos acredita ser eticamente admissível aos médicos explicarem as suas objecções morais aos doentes (63%). A maioria também acredita que os médicos são obrigados a apresentar todas as opções (86%) e a referir os doentes a outro médico que não objecte ao procedimento requerido (71%). Médicos do sexo masculino, religiosos, e que tinham objecções pessoais a práticas clínicas moralmente controversas apresentaram menor probabilidade de responder que os médicos devem revelar informação relevante ou referir os doentes para procedimentos aos quais o médico objectasse por motivos morais.
Conclusões
Muitos médicos não se consideram obrigados a revelar informação relevante nem a referir os doentes para procedimentos legais mas moralmente controversos. Os doentes que desejam informação ou acesso a esses processos podem precisar de tomar a iniciativa de determinar se os seus médicos lhes satisfarão esses pedidos.
É certo que o estudo foi realizado nos Estados Unidos, e retrata portanto uma realidade americana, mas penso que as suas conclusões são válidas no conjunto do mundo ocidental. Transcrevo dois excertos que me parecem particularmente interessantes, sobretudo o segundo:
"Os julgamentos dos médicos sobre as suas obrigações estão significativamente associados às suas características religiosas, de género e crenças sobre práticas clínicas moralmente controversas. Médicos do sexo feminino são mais a favor de uma informação completa e referência do que médicos do sexo masculino, talvez porque muitos temas controversos em Medicina (nomeadamente o aborto, a contracepção e tecnologias de reprodução assistida) envolvem desproporcionadamente a saúde sexual e reprodutiva da mulher. Médicos religiosos apresentam menor probabilidade de recomendar informação completa e referência do que os não religiosos, talvez porque, como muitos estudos anteriores mostraram, médicos religiosos têm maior probabilidade de opor objecções pessoais a muitas intervenções médicas controversas.
[...]
Estes conflitos podem ser compreendidos no contexto dos debates persistentes sobre paternalismo médico e autonomia dos doentes. Formas fortes de paternalismo são baseadas na assunção de que os médicos sabem o que é melhor para os seus doentes e podem portanto tomar decisões sem os informar de todos os factos, alternativas ou riscos. O paternalismo é largamente criticado por violar o direito de adultos à autodeterminação. O inverso de um forte paternalismo é o ênfase estrito na autonomia dos doentes, o que sugere que os médicos devem simplesmente apresentar todas as opções e permitir que os doentes escolham entre elas. Modelos que enfatizam a autonomia dos doentes a esse ponto têm sido criticados por diminuírem a responsabilidade dos médicos, tornando-os meros técnicos ou vendedores de cuidados e serviços de saúde."
Foco dois aspectos: o primeiro é que mais uma vez se confirma que são as pessoas religiosas aquelas que mais frequentemente actuam como detentoras da verdade, desrespeitando o direito dos outros à escolha e pretendendo impor o seu ponto de vista e o seu código de conduta. O segundo relaciona-se com a questão paternalismo médico / decisão informada do doente. Defendo absolutamente o direito dos doentes decidirem o que é melhor para eles e a obrigação dos médicos fornecerem toda a informação relevante. No entanto, temos de ter consciência de que na maioria dos casos (não me refiro a estes casos de práticas "moralmente controversas", mas sim aos problemas médicos em geral) os doentes não conseguem compreender ou assimilar as implicações, riscos e probabilidades envolvidas nas decisões clínicas - não é por acaso que o curso de Medicina é longo e trabalhoso eque a profissão exige um esforço de actualização constante para ser exercida com competência - pelo que é quase sempre pedido ao médico que tome grande parte da responsabilidade pelas decisões. E deve ser assim, de outra forma estaríamos a empurrar a responsabilidade de decisões, por vezes muito difíceis, para pessoas que de facto não estão em posição de as tomar da melhor forma, além de frequentemente o próprio processo da doença perturbar a sua capacidade de análise racional. Penso que essa capacidade de partilhar com o doente a informação e a decisão faz parte do dever profissional do médico, caso contrário seria de facto reduzido a um vendedor de cuidados de saúde. Obviamente, no entanto, estas considerações aplicam-se a decisões técnicas, relacionadas com o conhecimento médico, nunca a decisões morais, que são da exclusiva responsabilidade de cada um envolvido.
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