domingo, janeiro 28, 2007
O Processo, ou justiça à portuguesa
Tenho evitado escrever sobre o tão badalado caso Esmeralda tal como evitei por algum tempo manifestar-me sobre o referendo à despenalização do aborto – porque me irrita a maneira como as questões hoje em dia são discutidas nos media. Seja qual for o assunto – da despenalização do aborto aos voos da CIA, do caso Casa Pia ao livro de Carolina Salgado, das buscas na redacção de um jornal à adopção por homossexuais – as coisas funcionam invariavelmente da mesma forma: é como se um seixo caísse numa poça, provocando regulares e previsíveis ondas concêntricas (na forma de declarações, artigos de informação nem sempre muito informativa, colunas de opinião, trocas de galhardetes, debates televisivos, opiniões do Professor Martelo..., em que cada um ocupa um lugar bem determinado e diz exactamente aquilo que se espera dele, como numa peça de teatro inúmeras vezes representada em que os papéis parecem já mais representados por hábito do que por convicção), cuja intensidade se vai esbatendo até se desvanecer a agitação e ficar tudo como antes. É tudo tão previsível, e tão estereotipado, faz-nos sempre lembrar como vivemos num país de opereta.
Mas, tal como no caso do referendo, em que a indignação contra a hipocrisia levou a melhor sobre a minha contenção, também neste caso da menina entre famílias me apetece dar a minha opinião, porque se trata de assunto que me toca particularmente, pois também eu já passei pelos retorcidos labirintos das adopções.
E mais uma vez, o que ressalta deste caso é muito menos a “razão” de uma parte ou da outra do que a ineficácia e injustiça do nosso sistema judicial e a impunidade total dos juízes, que se comportam como se fossem uma casta à parte com poderes de direito divino (como tal, indiscutíveis). Porque, quer se favoreça o pai biológico ou a família que quer adoptar, é inaceitável que um processo de que depende a vida de uma criança pequena demore anos. E depois há os habituais elementos bizarros tão característicos da nossa “justiça”, neste caso aplicados ao capítulo particular que respeita crianças / adopções / família.
Em primeiro lugar, é o descrédito generalizado de que o sistema goza junto das pessoas que leva a que um casal que deseja adoptar recorra a “portas travessas” para o fazer. Com efeito, este casal não obteve a criança por vias oficiais, mas directamente da mãe, com uma declaração desta “cozinhada” por eles em que renunciava a quaisquer direitos sobre a filha e permitia a sua adopção por eles, e só depois tentou oficializar a situação. O problema começa logo aqui – desde que a lei obriga a que seja investigada a paternidade de qualquer criança registada sem nome de pai (tendo desaparecido a figura do pai incógnito) por se considerar ter um pai um direito fundamental da criança, esta criança nunca poderia ser adoptada por ninguém enquanto a questão da sua filiação não estivesse resolvida, já que o pai teria um direito à tutela igual ao da mãe e poderia querer exercê-lo (como aconteceu). O casal errou aqui – por ingenuidade apenas? por chico-espertice à portuguesa? provavelmente por uma combinação das duas.
Depois, é o tempo infindável para resolver qualquer coisa – as notificações, as análises e, por fime pior que o resto, as decisões. Como sempre, enfeitadas, acrescentadas e compostas por muitos recursos e trecursos, considerações e protestos, com processos que somam centenas de páginas por qualquer questiúncula. O que levou a que uma questão que surgiu quando a criança ainda não tinha 2 anos se tenha arrastado até estar com quase 6. O que obviamente altera completamente a situação – até os ferozes defensores de que um embrião conta o mesmo que uma criança de 2 anos reconhecerão que os laços familiares criados em 6 anos são mais fortes do que os estabelecidos até aos 2.
Quanto a pormenores, tão característicos do nosso sistema, cito apenas um exemplo, tirado de um jornal no sábado 27 de Janeiro: um casal foi condenado por maus tratos a um bebé de Viseu que deu entrada no hospital aos 50 dias de idade “em coma, com fracturas do crânio, hemorragias intra-cranianas e da retina e lesões do ânus” a 10 e 4 anos de prisão (o pai e a mãe, respectivamente). Comparem-se as penas com os 6 anos de prisão aplicados ao sargento que tenta adoptar a Esmeralda, e que foi preso preventivamente em vésperas do Natal.
Segue-se o queda do seixo na poça e os círculos ondulatórios do costume, com os vários corifeus sacando apressadamente da sua máscara (fixa e imutável, como no teatro grego) para não perderem a oportunidade de cumprir o seu papel.
Por fim, a única vantagem de todo este triste caso é chamar a atenção para o péssimo funcionamento do sistema judicial, para a inimputabilidade dos juízes (tanto mais chocante quanto maior a sua falta de senso, que não é rara) e para o predomínio (quanto a mim injusto e indevido) que a nossa lei confere aos laços biológicos, que levam à manutenção de tantos casos de maus tratos sobre crianças que por vezes terminam com a morte destas.
Já agora, dou a minha opinião pessoal sobre este caso concreto: não simpatizo com nenhuma das partes (apenas com a criança, coitada, que não tem culpa do que lhe acontece) – os candidatos a pais que quiseram contornar com chico-espertice a legalidade, à maneira dos construtores de habitações clandestinas, e depois persistiram nas suas manobras utilizando para engonhar a situação a mesma chicana processual que agora criticam e de que se reclamam as vítimas; o pai biológico que não o queria ser e que assumiu uma postura de arrependido / convertido; a mãe biológica que renunciou acertadamente a uma criança que não podia criar mas que agora não resistiu à oportunidade de ter o seu momentozinho de celebridade e aproveitar para um ajuste de contas; os juízes insensatos e pomposos que vivem aplicadamente noutro planeta. Todos juntos criaram uma bela embrulhada. Penso que o caso devia ter sido decidido há 4 anos, provavelmente a favor do pai biológico caso assegurassem a capacidade deste para exercer a tutela e para desencorajar as adopções à margem do sistema; agora penso que deveria ser decidido a favor da família de facto (a adoptante) a bem da criança, com direitos ao pai biológico semelhantes aos que tem qualquer outro pai com filhos cuja tutela é concedida ao outro cônjuge.
Como todos estes casos – a Esmeralda, o referendo, o Apito, a Casa Pia, o Sistema Nacional de Saúde a saque, o caos do ensino – me entristecem e me desanimam quanto a viver em Portugal...
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