terça-feira, setembro 12, 2006
O Milagre Segundo Salomé, de José Rodrigues Miguéis
O Milagre Segundo Salomé foi uma agradável surpresa. Tinha lido pouco de José Rodrigues Miguéis - A Escola do Paraíso há muitos anos, de que me lembro mal mas de que não gostei muito, e Uma Aventura Inquietante há alguns anos, de que gostei mas achei um livro menor. De modo que foi por acaso que comecei a ler este - no final das férias, quando se me acabaram os meus livros - o que muitas vezes produz bons resultados (serendipidade!).
Inicialmente, irritou-me pela linguagem, muito barroca, com excessiva utilização de arcaísmos, regionalismos, etc, expressões que geralmente pretendem dar um cunho "castiço" ou genuíno" a um texto, mas que geralmente apenas o sobrecarregam inutilmente e lhe retiram autenticidade, pois é difícil empatizar com um texto que soa algo artificial. No entanto, é engraçado como esse defeito vai diminuindo ao longo do livro, como se o autor se fosse entregando mais à narrativa, envolvendo-se nela, e esquecendo progressivamente os artifícios de estilo (claro que poderia dar-se o caso de simplesmente nos irmos habituando à linguagem, mas não me parece, mesmo porque reparei nisto durante a leitura).
Feita esta ressalva, achei o livro muito bom. Pinta um retrato inteligente, irónico e implacável da decadência da Primeira República, que tristemente se aplica à situação actual como uma luva - como Portugal muda pouco! - e por onde se percebe como o cenário era propício ao aparecimento de ditadores, sebastiões e... milagres. Os interlúdios em que o autor se alarga nestas descrições são por vezes palavrosos, mas compensam pelo conteúdo, como no impagável - e sinistro - retrato do grande capitalista, e sobretudo na espectacular descrição jornalística do Milagre, que acho tão perfeita que não resisto a transcrevê-la:
(Para situar a descrição: Salomé é uma jovem prostituta romântica e sentimental que vive por conta de um milionário; atravessando uma crise de consciência - existencial - vai em peregrinação nostálgica à sua terra natal, um fim de mundo nas Beiras onde guardava ovelhas. Pára nos montes nos arredores da aldeia, e vagueia um pouco ao fim da tarde, em estado de grande perturbação emocional, elegantemente vestida de seda branca, capa de cetim azul, estola de raposas prateadas e chapéu parisiense de lantejoulas; avista uns pastorinhos com os quais se comove e choca-se porque eles fogem dela, e regressa perturbada ao carro, chamada por golpes de buzina, enquanto estala uma tempestade.)
"Caso é que - rezam solícitos correspondentes - a treze de Abril e sexta-feira, ao sol-pôr, estando pesados e plúmbeos os céus, três crianças cujos nomes são de uma «bíblica» simplicidade: Jaquina, Maria e Manel, andavam a apascentar umas ovelhas no cerro de Lapa d'Ursos, sobranceiro ao lugarejo de Meca, quando, um pouco acima delas, no alto das rochas e sob as ramarias dum velho sobreiro que ali vingou crescer e afrontar os séculos e os temporais, se aperceberam de um clarão sobrenatural. Erguendo os olhos, avistaram uma figura de radiosa beleza, na qual sem hesitar reconheceram a benta imagem da Senhora das Dores, padroeira da freguesia, fervorosamente adorada na região.
Tinha na fronte a coroa cravejada de jóias, delas tão conhecida; o manto azul flutuava de manso na brisa do entardecer, e a túnica tinha a alvura das pombas da Aleluia. As névoas do ar, em torno dela, eram como arminhos leves ou revoadas de querubins; e toda ela irradiava auréolas. Ficaram a contemplá-la, medusadas de assombro. E logo - diz a Jaquina, pelas outras confirmada - a inefável imagem lhes estendeu os braços e disse: «Filhos, vinde a mim e orai!» A tais palavras, que eram pura música celestial, os três pastorinhos, vencidos de pavor, deitaram encosta abaixo, em direcção à aldeia, clamando pelas gentes, que viessem ver a Aparecida!
[...] Um pormenor que muito impressionou as gentes; os meninos afirmam ter ouvido, no momento da Aparição, o som repetido de trombetas anunciadoras da mística visita."
E o texto prossegue neste tom, com os efeitos provocados pelo milagre, as repercussões locais, depois nacionais, a atitude da Igreja, etc. Acho esta passagem soberba - de facto, no Portugal miserável e atrasado da época, de que outra forma poderiam interpretar o que viam os três brutinhos das berças? Acho uma das melhores explicações apresentadas até hoje para o milagre de Fátima... perdão, de Meca!
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