sexta-feira, abril 28, 2006

Partidas da memória

Um episódio de ontem, que mostra como a memória é uma coisa curiosa:

Há uns dois anos e meio, estive com duas amigas em Veneza (de que aliás gostei muito) e ficámos num hotel simpático e antigo em excelente localização: de frente para a laguna, à saída do Grande Canal, a dois passos da Praça de S. Marcos. Como uma colega nossa tivesse marcado uma viagem a Veneza e nos perguntasse se aconselhávamos algum hotel, elogiámos-lhe esse em que ficáramos, mas cujo nome nenhum de nós recordava. Ora eu tenho geralmente boa memória para nomes, e tinha a certeza que me lembraria deste se o visse e/ou ouvisse. Portanto, pusemos mãos à obra – ligámos a net e pesquisámos no google os hotéis de Veneza, sabíamos a localização, nada mais fácil.

Há centenas de hotéis em Veneza, de modo que seleccionámos um mapa com a localização, de que nos lembrávamos perfeitamente, e lá estava uma fila de hotéis alinhados ao longo do Grande Canal. Fomos seleccionando os hotéis um a um: “Não, não era o Westin, este era onde ficou o chefe…”, “Não, o Danieli é conhecido, é caro de mais…”, “Seria este, o Mónaco?”, “Este não me parece, Metropole não me diz nada…”, “Acho que era este, o Rialto!”, “Nada disso, nem estávamos perto da ponte!”, “Tenho a certeza que começava por R…. Riviera?”. Em alguns casos, abrimos o site dos hotéis e nunca reconhecemos nenhum como o nosso. Eu estava um bocado irritado, sobretudo porque localizei exactamente o sítio, mesmo em frente de San Giorgio, e aí era esse Hotel Metropole, que não era o nosso de certeza, e uma das minhas amigas dizia: “Mas eu até me lembro dessa fachada, passávamos sempre por lá, era mesmo ao lado!”. Conclusão unânime: “Deve ter fechado! Ou então mudou de nome.”

Chegado a casa, ainda com a dúvida irritante no espírito, procurei o meu guia turístico de Veneza, que desencantei no fundo de uma prateleira poeirenta, para ver se descobria lá o famigerado nome que nos escapava – o livro abriu de imediato sobre uma anotação do horário de funcionamento da galeria Peggy Guggenheim, rabiscado… numa folha timbrada do Hotel Metropole! Mais à frente, a factura do Hotel Metropole… Fiquei mesmo surpreendido – precisamente o hotel que todos tínhamos a certeza absoluta de não ser o nome correcto, e cujo site abríramos e cujas fotos acháramos que não eram do nosso hotel! Procurei depois a descrição do hotel no guia, e lá estava, ponto por ponto, o que nós nos lembrávamos. De facto, a memória tem mecanismos curiosos; actualmente pensa-se que se trata de uma reconstrução mental, e não de uma gravação armazenada que se passa como um vídeo, e penso que episódios como este concordam bastante bem com esta teoria.

Enfim, sei que esta história é tola e não interessa nada, mas apeteceu-me partilhá-la; se quiserem, pode servir um propósito didáctico – como se pode acreditar que existem testemunhas completamente fiáveis, dependendo da memória, quando três adultos de formação superior, inteligentes e – terão de aceitar a minha palavra quanto a isso… - sãos de espírito, estavam os três capazes de jurar, com a certeza absoluta, que não tinham ficado no Hotel Metropole, uns escassos dois anos e meio antes?


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