quarta-feira, abril 26, 2006

Insensatez medicalizante, ou Em Busca da Normalidade Perfeita

Tenho escrito várias vezes sobre este tema - a mania da sociedade ocidental moderna de medicalizar tudo aquilo que de alguma forma se desvia da "norma" estabelecida como correcta, ditada por uma certa cultura americana e entusiasticamente aceite pelas nossas elites bem-pensantes - porque é um assunto que me preocupa (e me irrita soberanamente). Assim, reproduzo aqui dois excertos que encontrei esta semana na literatura médica, que me parecem bastante sensatos e significativos.

O primeiro é parte de uma crítica de Howard Markel, médico e historiador de Medicina, sobre o livro "American Normal: The Hidden World of Asperger's Syndrome":

"Infelizmente, somos uma nação fixada em "patologizar" muitos comportamentos complexos - desde o estado hiperansioso de alguns adultos aos comportamentos de crianças que têm mais energia e capacidade de concentração mais curta do que é confortável para os seus pais e professores carregados de trabalho. Desafortunadamente, a nossa necessidade reflexa de diagnosticar vem a par com um desejo incontrolável de tratar com uma torrente de potentes medicamentos. Pode-se apenas especular sobre o que as gerações futuras pensarão sobre o excêntrico impulso da nossa sociedade de rotular medicamente e alterar quimicamente os comportamentos humanos que são temporal ou culturalmente vistos como anormais. Talvez algumas vezes, como Osborne assinala a Freud, um "tique" seja apenas isso - um "tique"".

(Nota: o síndrome de Asperger é uma variante de autismo, muito ligeira, que se caracteriza por um comportamento excêntrico de uma combinação de enciclopedismo e obsessões, e que tem estado ultimamente muito na moda na Neuropsiquiatria americana, nomeadamente sendo aplicado a torto e a direito em "diagnósticos retrospectivos" de uma série de personalidades geniais.)

O segundo é um editorial de Richard McNally, professor de Psicologia em Harvard, sobre outra doença da moda, a PTSD (Post-Traumatic Stress Disorder):

"Há vinte anos, a American Psychiatric Association reconheceu a PTSD como um diagnóstico psiquiátrico formal. PTSD foi conceptualizada como uma doença de ansiedade que se desenvolvia após exposição a eventos aterradores, habitualmente com risco de vida - stresses traumáticos manifestamente invulgares, fora da vida quotidiana. Os exemplos característicos incluiam guerra, violação e estadia em campos de concentração.

Mas, nos últimos anos, assistimos a um desvio conceptual insinuando-se na definição de trauma, fazendo com que stresses vulgares sejam considerados capazes de causar PTSD. A doença é actualmente diagnosticada em pessoas cujos acontecimentos stressantes variam desde exposição a piadas de mau gosto no ambiente de trabalho a ter um filho saudável - e muitos outros. Na verdade, um estudo mostrou que quase 90% dos americanos se qualificam como sobreviventes de trauma - de acordo com a definição actual de trauma.

Porque é que isto é um problema? Há 3 razões.

Primeiro, o alargamento da definição de trauma ameaça sabotar qualquer hipótese que possamos ter de elucidar os mecanismos psicobiológicos que dão origem à PTSD. O sobrevivente de um "acidente de chapa" é pouco provável que tenha muito em comum com um sobrevivente do Holocausto.

Segundo, quanto mais alargamos o conceito de stress traumático, menos credivelmente podemos atribuir significado causal ao stress em si, e mais temos de enfatizar factores de vulnerabilidade pessoal preexistentes. Mas desviar a responsabilidade causal do trauma faz desaparecer a razão que existiu para criar o diagnóstico de PTSD em primeiro lugar.

Terceiro, classificando cada vez mais a vida moderna como trauma, podemos sobremedicalizar respostas emocionais normais a tensões e desprezar a capacidade humana de fazer face à adversidade.

Em conclusão, devemos regressar ao conceito inicial de trauma; disso depende a credibilidade do nosso campo. É essa a minha opinião."

(Se o texto parecer por vezes um pouco "trapalhão", é porque a tradução é minha...)

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