sábado, dezembro 30, 2006

Assiduidades controladas



Não tencionava escrever sobre este assunto, mas posts como este (de médicos, ainda por cima) fizeram-me mudar de ideias. Vem isto a propósito de mais uma medida zelosa do nosso governo que, como a maior parte das que tem tomado, se destinam a desacreditar os profissionais de uma determinada classe e a ter impacto mediático - do tipo "nós vamos pôr isto na ordem" - e, como todas as outras, são suficientes para deixar as pessoas descontentes mas não para resolver o que quer que seja.

Pessoalmente, não tenho dúvidas de que sou frontalmente contra a medida de controlo da assiduidade dos médicos nos hospitais com relógios de ponto, sejam mecânicos, electrónicos ou digitais. Acho que se trata de uma medida claramente destinada a humilhar e a complicar a vida das pessoas, sem qualquer vantagem.

Com efeito, quem ganha com este controlo? Os doentes? A produtividade? Não, servem apenas para reforçar a ideia de que os médicos são uns malandros de uns privilegiados, que querem é sair tarde da cama e safar-se para a privada, deixando os pobres utentes à espera horas a fio por consultas e parasitando o dinheiro dos impostos nada fazendo nos hospitais onde lhes pagam.

É claro que há médicos pouco produtivos, atrasados e mandriões. Como em todas as profissões. Mas não será certamente por picarem o ponto que se tornarão melhores. Por outro lado, o descontentamento será generalizado, e o que é certo é que as pessoas trabalham pior se estiverem descontentes e desmotivadas, o que é o que este governo - na linha aliás dos anteriores - tem trabalhado arduamente para conseguir.

Eu não chego às 8 ao hospital, que é a minha hora oficial de entrada. Porque não é necessário. E saio muitas vezes antes da hora oficial de saída, outras vezes depois, conforme o trabalho que tenho. Em alguns serviços, a pontualidade é importante, como nos blocos operatórios, nos turnos de urgência, nos exames complementares ou consultas marcados. E nesses serviços as pessoas são geralmente pontuais, porque é necessário. Porque ao contrário da ideia que o governo gosta de propalar, e que estas medidas acentuam, os cirurgiões querem operar e não o fazem porque têm pouco tempo de bloco, as pessoas entram a horas nas urgências porque também gostam de ser rendidas a horas, e em geral os médicos gostam do que fazem e são pessoas responsáveis - o curso de Medicina, os internatos, os exames, passa-se por tudo isso porque se tem vontade, não porque é um emprego confortável onde se ganha muito dinheiro.

Ou seja, o que eu quero dizer é que o nosso trabalho não é uma tarefa burocrática com horas marcadas; quando estas existem, a organização da estrutura (hospital, centro de saúde) é o que é necessário para esses horários serem cumpridos. Quando não são, é geralmente por má organização - exames ou consultas marcados em excesso para o tempo disponível, ou para horas em que as pessoas estão obrigatoriamente a acabar outras coisas, ou má coordenação com secretariados ou resultados de exames complementares.

Mas é sempre mais fácil assumir poses de autoritarismo virtuoso e fazer leis que se sabe antecipadamente que não vão ser cumpridas. Essa é aliás uma característica muito portuguesa - a plétora de leis incumpríveis, que nos coloca a todos no papel de transgressores, dependentes do livre-arbítrio das pessoas com poder para punir as transgressões. E é tão conveniente acirrar a opinião pública contra os médicos, enquanto se corrói o Sistema Nacional de Saúde! Porque o que o governo se esquece de dizer é que está a pressionar os médicos para diminuirem os horários, e não para os aumentarem, para pagar menos. Como de resto já fez com os enfermeiros. Como se esquece de publictar as restrições orçamentais que impedem que se utilizem melhores meios, se contrate o pessoal necessário, nomeadamente para cumprir as reestruturações ordenadas pelo próprio governo, como é o caso do novo plano de urgências.

E depois vêm estes burocratas virtuosos aplaudir estas medidas! Ah, como detesto a mania portuguesa (e não só) da honestidade por decreto! Que só tem paralelo na chico-espertice portuguesa de rodear as regras e não cumprir as ditas leis.

sexta-feira, dezembro 29, 2006

Diálogos de Vanguarda - a exposição de Amadeo Souza-Cardoso

Gostei imenso da excelente exposição de Amadeo Souza-Cardoso na Gulbenkian. É sem dúvida das melhores exposições que vejo em Portugal em muitos anos - uma boa quantidade de obras, com boa representação de todas as fases do pintor, bem apresentadas, e com o cuidado de as integrar no contexto de obras que o influenciaram e de trabalhos dos seus contemporâneos. Acho sempre muito interessantes estas retrospectivas de um artista - mais ainda quando se trata de alguém que eu aprecie particularmente, como é o caso, pois considero Amadeo Souza-Cardoso dos melhores pintores portugueses de sempre (juntamente com Vieira da Silva e Almada Negreiros), e pertence à época que acho culturalmente das mais interessantes de todos os tempos (o início do Modernismo, a fase revolucionária das primeiras 2 décadas do século XX). Permitem-nos acompanhar a sua evolução, testemunhar as experiências realizadas, particularmente nas várias versões com que um tema é tratado, as suas influências, etc.

O conjunto das obras expostas é soberbo, muito completo. Gosto principalmente das do ano de 1913, quando Amadeo começa a abandonar o desenho mais realista e convencional mas ainda não mergulhou no abstracto da sua última fase, quando as formas se estilizam e decompoem, como vitrais - as minhas telas favoritas são Barcos e Les Cavaliers, que me apaixonaram desde a primeira vez que as vi, já há muitos anos, por alturas da abertura do Centro de Arte Moderna.
Gostei também muito da colecção de desenhos, que não conhecia, e que inclui um magnífico D. Quixote e o moinho, e em geral das figuras de cavalos e galgos, simultaneamente elegantes, fortes e sensuais. As obras de Modigliani expostas são muito belas, sobretudo uma figura de nu em fundo azul e uma cabeça de pedra, que parece uma divindade tutelar poderosa e enigmática. As esculturas de Brancusi, os quadros de Kokoshka, as máscaras africanas, os desenhos de cavalos japoneses, ajudam a compreender a arte e as experiências de Souza-Cardoso. Ver a colecção de livros de arte do pintor lembra-nos que é recente a facilidade de acesso a reproduções fidedignas de arte; naquela época, as fotografias de quadros eram a preto e branco e pouco nítidas; que revelação e experiência fantástica devia ser então a descoberta das obras num museu! Mesmo agora, é diferente ver as obras ou as suas reproduções, mas nada que se compare a esse tempo, em que era necessário ir ao Louvre para descobrir Rubens, a Florença para Botticelli, a Paris e Nova Iorque para os impresionistas, etc... Assim se compreende o impacto que tiveram acontecimentos como as exposições pós-impressionistas em Londres organizadas por Roger Fry, ou os ballets russes de Diaghilev (aliás, também evocados nesta exposição, com os desenhos de figurinos).

O principal defeito da exposição, a meu ver, é a iluminação - pareceu-me em muitas partes mal iluminada, gostaria de ver os quadros inundados de luz e não numa penumbra algo soturna... Mas no geral acho que a exposição está muito boa, e não resisti a comprar o catálogo, que por sinal é caríssimo, mas enfim, não é todos os dias que há uma retrospectiva desta qualidade de Amadeo de Souza-Cardoso.


Nota: como é habitual, vagueando pela net a propósito deste tema, dei com este blog - http://pinturaportuguesa.blogs.sapo.pt/ - que tem uma selecção notável de obras de pintura portuguesa, como o nome indica. Vale a pena ver.

quinta-feira, dezembro 28, 2006

Where the Sidewalk Ends, de Otto Preminger


Vi este filme ontem à noite na Cinemateca. Um belo film noir, com Dana Andrews e Gene Tierney, escelentes. Há alguns dias, vira Fallen Angel, também de Otto Preminger, menos bom, mas razoável. Saliento que a programação da Cinemateca para Janeiro é óptima, planeio ir lá muitas vezes! Para mais informações, consultar o site www.cinemateca.pt. É bom lembrar que o cinema começou há mais de 100 anos, e que os filmes bons antigos continuam a ser bons.

quarta-feira, dezembro 27, 2006

Durante a batalha de Borodino, segundo Tolstoi, ou o valor das opiniões "entendidas"



"A ordem de disposição citada aqui não era em nada pior, ou era ainda melhor, do que todas as ordens de disposição anteriores de Napoleão com que as batalhas tinham sido ganhas. As pseudo-ordens no decorrer da batalha também não eram piores do que as antigas, mas as mesmas de sempre. Mas esta ordem de disposição e outras ordens parecem piores do que as anteriores porque a batalha de Borodino foi a primeira que Napoleão não ganhou. Todas e quaisquer ordens, por mais perfeitas e inteligentes que fossem, parecem muito fracas quando com elas não foi ganha uma batalha, e cada cientista militar as critica com ar entendido; e as piores ordens parecem muito boas, levando pessoas sérias a escreverem grossos volumes a mostrar os méritos de ordens sem mérito nenhum, quando com elas foi ganha uma batalha."

Lev Tolstoi, in Guerra e Paz

Transcrevo esta passagem porque me parece uma descrição perfeita sobre as avaliações a posteriori, que é aplicável a praticamente todos os acontecimentos históricos (da História e de histórias). Aliás, Tolstoi faz observações semelhantes ao longo do livro em outras passagens. Estou a reler Guerra e Paz, que tinha lido há muitos anos, e estou a gostar imenso, muito mais do que da primeira vez. De facto, há muitos livros que são muito mais bem compreendidos e apreciados com um pouco mais de maturidade... E este merece amplamente a fama que tem. Quanto a esta passagem durante a extensa parte dedicada à batalha de Borodino (que toda ela é uma descrição excelente de como eram confusas e complicadas as batalhas nos tempos anteriores à facilidade de comunicações que hoje nos parece tão óbvia), é muito apropriada para nos fazer repensar a validade de tantas apreciações feitas com ar entendido sobre os mais variados acontecimentos...

terça-feira, dezembro 19, 2006

Modas na linguagem


As modas vêm e vão, na linguagem como nos chapéus ou no formato das calças ou no corte de cabelo. Mas há algumas tão irritantes...

Uma expressão que entrou na linguagem corrente nos últimos tempos é o irritante "Peço desculpa", em vez do "Desculpe", tão mais simples e menos servil. Acho que o acrescentar "peço" deve pretender enfatizar a expressão de arrependimento, o que torna a frase ridícula, uma vez que na esmagadora maioria dos casos em que é utilizada aplica-se a prosaicas situações do género de pisar o pé num ajuntamento ou de passar à frente numa porta. Ou será uma tentativa de reproduzir em Português a expressão tão british "I beg your pardon"? Acho que não resulta!

Mas a pior de todas é mesmo aquela que se tornou quase universal nos últimos anos: "há xx tempo atrás", porque ainda por cima é gramaticalmente incorrecta. O correcto é "há xx tempo" ou então "xx tempo atrás". Mas o "há xx tempo atrás" alastrou dos locutores de televisão (esse terrível meio de difusão de disparates linguísticos) às novelas portuguesas (idem), aos políticos, aos colunistas nos jornais... Quando, há uns tempos, ouvi o meu próprio pai, habitualmente de linguagem correcta e austera, a utilizá-la pensei: "Pronto! Já não há remédio!".

Também as modas de linguagem gestual surgem sem se saber como e difundem-se imperceptivelmente. Quem raio terá inventado aquele actualmente ubíquo gesto com os 2º e 3º dedos das mãos a significar "entre aspas"?

Pois, bem sei que isto são frivolidades; e então? Não se vive só a pensar nos romancistas russos nem no problema do aborto!

domingo, dezembro 17, 2006

Um passeio a Fronteira


Sempre gostei imenso do Alentejo no Outono, sobretudo num dia de sol. As cores - castanhos e verdes, com o azul ocasional das ribeiras e o branco das casas -, a luz, as oliveiras e os sobreiros espalhados. Que boa forma de passar um sábado outonal, percorrendo as estradas do Alentejo em boa companhia, ouvindo música e conversando! E por fim realizando o objectivo do passeio, e descobrindo um delicioso sucessor para o meu saudoso companheiro de tantos anos. Há dias bons.

terça-feira, dezembro 12, 2006

Estranhos, de Simon Brand


Unknown é um bom thriller, na linha de filmes como The Usual Suspects ou Memento - argumento engenhoso, ambiente de film noir muito bem criado, interpretações sóbrias e sólidas. Greg Kinnear como sempre muito bom, twists credíveis qb. É bom constatar que se continuam a fazer bons filmes negros.

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Entre Inimigos, de Martin Scorsese


The Departed é um dos melhores filmes de Martin Scorsese, pelo menos dos últimos 20 anos. Violento, desenrola-se como uma tragédia grega moderna até ao final. O argumento é excelente, as personagens construídas com verosimilhança e suportadas por actores no seu melhor - Jack Nicholson parece melhorar com a idade, Matt Damon, Mark Wahlberg e Martin Sheen óptimos, até Leonardo DiCaprio, com cujas interpretações habitualmente não empatizo grandemente, está convincente - é sem dúvida o seu melhor papel. É bom ver Scorsese voltar em grande forma, depois dos últimos anos, de que apenas vi Gangs of New York e me fez adormecer... Já desanimava, desde The Age of Innocence, que ele voltasse a fazer algo de valor. Mas voltou, e ainda bem.

A Queda, de Oliver Hirshbiegel


Der Untergang é um filme impressionante, não só por si próprio - o tom sóbrio e o ambiente sombrio, as excelentes interpretações - mas sobretudo pelo que evoca, como todas as obras de qualidade que tratam o tema do nazismo. Impõe-se sempre a pergunta: como foi possível? Mas foi, aconteceu. É fundamental nunca ser esquecido, e filmes como este contribuem para isso da melhor forma, apelando à nossa consciência e às nossas emoções.

Não sei se tudo o que aparece é factualmente correcto, já vi referido que há inexactidões, como a falta de disciplina dos guardas durante a vida de Hitler ou as festas no bunker. Mas não custa a acreditar, naquele ambiente surrealista, com o ditador desesperado comandando exércitos inexistentes, Himmler preocupando-se com a melhor maneira de cumprimentar Eisenhower ou Magda Goebbels dirigindo o coro celestial dos seus 6 filhos que já decidira matar para não viverem num mundo sem nacional-socialismo.

Bruno Ganz está excepcional como Hitler, destacando-se num elenco todo ele magnífico.